quarta-feira, 23 de maio de 2007

O aspecto relacional das interações na Web 2.0, por Alex Primo

O aspecto relacional das interações na Web 2.0
Alex Primo
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
alex.primo@terra.com.br

Resumo: A Web 2.0 é a segunda geração de serviços na rede, buscando
ampliar as formas de produção cooperada e compartilhamento de informações
online. Certamente a Web 2.0 tem um aspecto tecnológico fundamental. Mas
não se reduz a isso. Este artigo busca, a partir de uma perspectiva relacional,
questionar quais são os atores e que forma têm suas interações na Web 2.0.
Para este estudo, interações em blogs, na Wikipédia, no Flickr, no del.icio.us e
no Orkut são analisadas.

Palavras-chave: Interação; Web 2.0; Relacionamento

Ao fazer citações deste artigo, utilize esta referência bibliográfica:
PRIMO, A.. O aspecto relacional das interações na Web 2.0. In: XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação, 2006, Brasília. Anais, 2006.

Introdução à Web 2.0
A Web 2.02 é a segunda geração de serviços online e caracteriza-se por
potencializar as formas de publicação, compartilhamento e organização de informações,
além de ampliar os espaços para a interação entre os participantes do processo. A Web
2.0 refere-se não apenas a uma combinação de técnicas informáticas (serviços Web,
linguagem Ajax, Web syndication, etc.), mas também a um determinado período
tecnológico, a um conjunto de novas estratégias mercadológicas e a processos de
comunicação mediados pelo computador. Este artigo dedicar-se-á a esta última dimensão,
sem que se possa descartar a inter-relação entre todas aquelas listadas.
1 Doutor em Informática na Educação (UFRGS), mestre em Jornalismo (Ball State University), publicitário
e jornalista (UCPel). Professor do PPGCOM/UFRGS, coordenador do Laboratório de Interação Mediada
por Computador (LIMC): http://www.ufrgs.br/limc.
2 O termo, que faz um trocadilho com o tipo de notação em informática que indica a versão de um software, foi
popularizado pela O’Reilly Media e pela MediaLive International como denominação de uma série de conferências que
tiveram início em outubro de 2004 (O’Reilly, 2005).
http://www.ufrgs.br/limc
2/15
A Web 2.0 tem repercussões sociais importantes, que potencializam
processos de trabalho coletivo, de troca afetiva, de produção e circulação de
informações3, de construção social de conhecimento apoiada pela informática. São essas
formas interativas, mais do que os conteúdos produzidos ou as especificações
tecnológicas em jogo, que serão aqui discutidas.
Segundo O’Reilly (2005), não há como demarcar precisamente as fronteiras
da Web 2.0. Trata-se de um núcleo ao redor do qual gravitam princípios e práticas que
aproximam diversos sites que os seguem. Um desses princípios fundamentais é trabalhar
a Web como uma plataforma, isto é, viabilizando funções online que antes só poderiam
ser conduzidas por programas instalados em um computador. Porém, mais do que o
aperfeiçoamento da “usabilidade”, o autor enfatiza o desenvolvimento do que chama de
“arquitetura de participação”: o sistema informático incorpora recursos de interconexão e
compartilhamento. Por exemplo, nas redes peer-to-peer (P2P), voltadas para a troca de
arquivos digitais, cada computador conectado à rede torna-se tanto “cliente” (que pode
fazer download de arquivos disponíveis na rede) quanto um “servidor” (oferta seus
próprios arquivos para que outros possam “baixá-lo”). Dessa forma, quanto mais pessoas
na rede, mais arquivos se tornam disponíveis. Isso demonstra, segundo O’Reilly, um
princípio chave da Web 2.0: os serviços tornam-se melhores quanto mais pessoas o
usarem.
Se na primeira geração da Web os sites eram trabalhados como unidades
isoladas, passa-se agora para uma estrutura integrada de funcionalidades e conteúdo.
Logo, O’Reilly destaca a passagem da ênfase na publicação (ou emissão, conforme o
limitado modelo transmissionista) para a participação: blogs com comentários e sistema
de assinaturas em vez de home-pages estáticas e atomizadas; em vez de álbuns virtuais,
prefere-se o Flickr4, onde os internautas além de publicar suas imagens e organizá-las
através de associações livres, podem buscar fotos em todo o sistema; como alternativas
aos diretórios, enciclopédias online e jornais online, surgem sistemas de organização de
informações (del.icio.us5 e Technorati6, por exemplo), enciclopédias escritas
colaborativamente (como a Wikipédia7) e sites de webjornalismo participativo (como
Ohmy News8, Wikinews9 e Slashdot10).
A progressão geométrica do número de blogs é uma recorrente ilustração da
Web 2.0. Muito embora a imprensa insista em descrevê-los com meros diários online,
reduzindo-os a uma ferramenta de publicação individual e de celebração do ego, os blogs
transformaram-se em um importante espaço de conversação (Primo e Smaniotto, 2006).
Os blogs tampouco podem ser analisados a partir de uma perspectiva massiva. Poucos
3 O que seria chamado por Hardt e Negri (2005) de trabalho imaterial ou uma produção biopolítica.
4 http://www.flickr.com/
5 http://del.icio.us
6 http://technorati.com
7 Para uma discussão sobre Wikipédia (http://www.wikipedia.org) e escrita coletiva ver Primo e Recuero
(2003a).
8 http://english.ohmynews.com/
9 http://en.wikinews.org/wiki/Main_Page
10 http://slashdot.org/
http://www.ufrgs.br/limc
3/15
são aqueles que possuem milhares ou até mesmo milhões de leitores. Entretanto, não se
pode concluir que trata-se de meio de pouca importância no cenário midiático. Através
dos blogs, pequenas redes de amigos ou de grupos de interessados em nichos muito
específicos podem interagir. Já a interconexão entre esses grupos pode gerar
significativos efeitos em rede. Essa propagação de informações gerando macro-efeitos a
partir da capilarização da rede vem sendo chamada de “poder da longa cauda11”. Logo,
hoje na Web não apenas os grandes portais têm importância. Mesmo os blogs que reúnem
pequenos grupos com interesses segmentados ganham peso na rede a partir de sua
interconexão com outros sub-sistemas. Ou seja, o modelo informacional de um grande
centro distribuidor de mensagens passa a competir com a lógica sistêmica da conexão de
micro-redes. Em outras palavras, enquanto modelo massivo foca-se no centro, a Web 2.0
fortalece as bordas das rede.
Outro fator que confere força a produtos midiáticos gerados nas “bordas” é o
desenvolvimento de um novo formato para a circulação de informações. Como se pode
recordar, a Internet foi logo celebrada por sua tecnologia pull (o conteúdo é “puxado”
pela audiência), que se opunha ao modelo push (o conteúdo é “empurrado” até a
audiência) da mídia massiva. Enquanto esta se caracteriza por um sistema centralizado de
distribuição dos mesmos conteúdos para toda a massa em horários e/ou espaços
determinados, “The Internet started out entirely as a ‘pull’ technology in the sense that
content was put onto the system to be pulled off as and when the receiver needed it”
(Priestman, 2002, p.136)12. Com a emergência da Web 2.0, desenvolveu-se uma forma
híbrida dos modelos push e pull. O RSS (Real Simple Syndication) é um sistema de
assinaturas no qual o internauta pode escolher que informações quer receber
automaticamente em seu software agregador. Em vez de visitar blogs, portais ou buscar
por novos podcasts13, este programa faz o download de todos os conteúdos “assinados”
que foram publicados recentemente. Esse recurso (uma forma de clipping contínuo e
automatizado) facilita a atualização do internauta sobre assuntos que lhe interessam,
reunindo todas as mensagens em um mesmo local para consulta no momento que mais
lhe convier14.
Além de novas ou potencializadas formas de publicação e circulação de
informações, a Web 2.0 apresenta um processo coletivo para a organização e recuperação
de documentos eletrônicos: o social bookmarking. Trata-se do registro de links de
“favoritos” (bookmarks) em sites como del.icio.us e Technorati. Porém, o que diferencia
11 Esse termo refere-se à curva de Pareto, que cai rapidamente no eixo Y, mas estende-se longamente no eixo X
(a chamada”longa cauda”). No contexto dos blogs, apenas uma pequena fração possui um grande número de conexões,
mas uma grande maioria possui poucas conexões.
12 Tradução do autor: A Internet começou inteiramente como uma tecnologia de “puxão” no sentido que o
conteúdo é posto no sistema para ser puxado quando receptor o necessitar.
13 Podcasts são programas em áudio que podem ser assinados via RSS. Para saber mais sobre esse fenômeno,
veja Primo (2005a).
14 Deve-se comentar, contudo, que o uso exclusivo desse formato híbrido, cuja consequência é o consumo de
informações altamente segmentadas, poderia afastar o internauta de materiais que ele não assinou, mas que poderia ter
contato através da navegação pela rede. Além disso, através do uso de programas agregadores certos conteúdos como o
layout original (do blog, por exemplo), imagens e debates são desperdiçados.
http://www.ufrgs.br/limc
4/15
estes serviços da mera listagem de apontadores em uma página online15 é o processo de
geração de metadados (ou seja, dados sobre dados) através da associação de tags
(etiquetas) a referências e materiais. No tagging, em vez do cadastramento padronizado
de informações como “autor” e “ano de publicação”, os internautas ao incluírem um novo
link em sua lista pública de bookmarks podem registrar quaisquer palavras que julgarem
ser associadas a um certo material. Esse processo vem sendo chamado de “folksonomia”,
neologismo criado pelo arquiteto de informação Thomas Vander Wal a partir dos termos
folk e taxonomia. Ou seja, em vez de uma categorização por especialistas que segue
rígidos padrões taxonômicos, a folksonomia seria uma classificação social de “baixo para
cima”16. Segundo Mathes (2004, p. 7) “a folksonomy represents a fundamental shift in
that it is derived not from professionals or content creators, but from the users of
information and documents. In this way, it directly reflects their choices in diction,
terminology, and precision17”. As tags vêm sendo usadas não apenas para conferir
significado para a quantidade de textos na Web, mas também para facilitar o registro e
recuperação de imagens. O site de publicação de fotos Flickr oferece o mesmo sistema
classificatório, permitindo que cada pessoa “etiquete” suas imagens digitais a partir de
livres associações (e não de um vocabulário controlado, como na taxonomia). Por
exemplo, uma foto do pôr-do-sol em uma praia na Tailândia pode ser arquivada no site
com as tags “praia”, “Tailândia”, mas também “beleza”, “férias” e até mesmo
“vermelho”. A partir dessas tags outro internauta buscando fotos de tons avermelhados
para a produção de um site sobre turismo poderá recuperar tal imagem.
Como se vê, a escrita coletiva online e o processo de tagging demonstram que
a abertura para o trabalho colaborativo oferece uma dinâmica alternativa (não uma
substituição) ao modelo de produção, indexação e controle por equipes de autoridades. A
partir de recursos da Web 2.0, potencializa-se a livre criação e a organização distribuída
de informações compartilhadas através de associações mentais. Nestes casos importa
menos a formação especializada de membros individuais. A credibilidade e relevância
dos materiais publicados é reconhecida a partir da constante dinâmica de construção e
atualização coletiva.
Contudo, não se pode supor a auto-organização grupal como um processo
mágico que faria sempre emergir a verdade a partir de vozes espontâneas, legítimas e
interessadas na construção de algo que é de interesse de todos e para seu próprio bem. Ao
mesmo tempo que a abertura para o trabalho coletivo pode motivar a intervenção de
múltiplas vozes — antes prejudicadas pela imposição de um modelo massivo
unidirecional —, vandalismos, confusões e erros de informação ou de uso das
ferramentas (como apagamento incidental de dados) ganham também espaço. Porém,
quando se discute o trabalho aberto e coletivo online, não se pode pensar que a regulação
seja eliminada ou desnecessária, nem que as relações de poder dêem lugar a relações
sociais absolutamente planas e estáveis. A rigor, dos desequilíbrios depende a evolução e
15 Em tempo, páginas com esse tipo de listagem são consideradas antecessoras dos blogs.
16 http://www.vanderwal.net/random/entrysel.php?blog=1529
17 Tradução do autor: a folksonomia representa uma mudança fundamental pois é derivada não de profissionais
ou criadores de conteúdo, mas de usuários de informações e documentos. Desta forma, ela diretamente reflete as
escolhas de enunciação, terminologia e precisão.
http://www.ufrgs.br/limc
5/15
o aperfeiçoamento do trabalho coletivo. Mas como prevenir que esse processo não seja
prejudicado por ações contra-producentes? Como evitar que os participantes se afastem
em virtude de conflitos excessivos, de ataques insistentes de vândalos, spammers ou de
pessoas apenas interessadas em testar os limites do trabalho voluntário18?
É nesse sentido que a chamada “arquitetura de participação” de muitos
serviços online pretende oferecer não apenas um ambiente de fácil publicação e espaços
para debate, mas também recursos para a gestão coletiva do trabalho comum. Além dos
processos de negociação coletiva, alguns sistemas incluem recursos para a gestão do
trabalho em rede. É o caso do Slashdot. Voltado para a publicação e debate de notícias
sobre tecnologia, o serviço apresenta um sistema de moderação compartilhada não apenas
dos conteúdos submetidos, mas também dos próprios participantes (Martins, 2006).
Periodicamente, 400 pessoas são sorteadas segundo o histórico de atividade no grupo
(antigüidade, assiduidade e qualidade das contribuições), para atuar como moderadores.
Durante um período determinado, passam a ter o poder de atribuir notas a cada notícia e
comentário, como também aos participantes que as submetem (este valor de “carma” é
constantemente atualizado). A partir do cruzamento dessas notas, as contribuições são
hierarquizadas ou mesmo evitadas. Tais valores também facultam aos leitores filtrarem
quais comentários desejam ler no fórum. O trabalho dos moderadores, por sua vez, é
avaliado por meta-moderadores, buscando evitar julgamentos injustos ou
posicionamentos radicais.

Interações na Web 2.0 quanto a sua forma: uma proposta de análise

Certamente a Web 2.0 tem um aspecto tecnológico fundamental. Mas não se
reduz a isso. De fato, as interações sociais são sensíveis a certos condicionamentos
trazidos pelo aparato tecnológico em jogo. Porém, a dinâmica social não pode ser
explicada pela mediação informática. E para repetir o que deveria ser óbvio: uma rede
social não é qualquer rede. Conforme Garton, Haythornthwaite e Wellman (1997, p. 75),
“When a computer network connects people or organizations, it is a social network. Just
as a computer network is a set of machines connected by a set of cables, a social network
is a set of people (or organizations or other social entities) connected by a set of social
relations, such as friendships, co-working, or information exchange19”. Como se vê, uma
rede social online não se forma pela simples conexão de terminais. Trata-se de um
processo emergente que mantém sua existência através de interações entre os envolvidos.
Esta proposta, porém, focar-se-á não nos participantes individuais, e sim no “entre”
(interação = ação entre). Isto é, busca-se evitar uma visão polarizada da comunicação,
que opõe emissão e recepção e foca-se em uma ou noutra instância. Uma rede social não
pode ser explicada isolando-se suas partes ou por suas condições iniciais. Tampouco
pode sua evolução ser prevista com exatidão. Como fenômeno sistêmico, sua melhor
18 Para uma discussão sobre a importância do monitoramento dos membros de uma comunidade, ver Primo
(2005b).
19 Tradução do autor: Quando uma rede de computadores conecta pessoas ou organizações, ela é uma rede
social. Da mesma forma que uma rede de computadores é um conjunto de máquinas conectadas por cabos, uma rede
social é um conjunto de pessoas (ou organizações ou outras entidades sociais) conectadas por relações sociais, como
amizades, trabalho conjunto, ou intercâmbio de informações.
http://www.ufrgs.br/limc
6/15
explicação é seu estado atual20. Os recursos e produtos desse tipo de rede são
incorporados, gerados, transformados e movimentados através de ações intencionais ou
não dos participantes. Por outro lado, isso não depende estritamente de determinado tipo
de laço social ou que haja sempre uma interação conversacional contínua entre dois ou
mais sujeitos.
Os membros do processo interativo serão aqui chamados de “interagentes”.
Como um estudo sobre as interações no ciberespaço não pode levar em conta apenas os
participantes humanos, considerar-se-á também os aparatos tecnológicos como
interagentes. Esta proposta de estudo quer abarcar tanto as interações entre pessoas,
quanto entre um sujeito e um mecanismo digital21 (ainda que este último tipo de interação
não seja, a rigor, social).
Considerando tais premissas, defende-se que o estudo da Web 2.0 deve levar
em conta não apenas os aspectos tecnológico e de conteúdo, mas também as interações
sociais quanto a sua forma: o aspecto relacional (Bateson, 1980; Rogers, 1998; Fisher,
1987; Watzlawick, Beavin e Jackson, 1967). Para operacionalizar esta discussão,
delimitar-se-á alguns interagentes das redes sociais: eu, tu (vós), ele (eles), it, nós,
nós/todos. Além disso, pretende-se analisar as interações de eu com a coletividade. Esta
proposta de estudo partirá sempre da perspectiva de eu. Ou seja, os interagentes serão
definidos e as interações observadas a partir da perspectiva de eu.

Eu, tu (vós), ele(eles), it, nós, nós/todos

O interagente eu pode ser um blogueiro, um redator na Wikipédia, um
fotógrafo no Flickr, etc. Quando eu conversa diretamente com quem já mantém um
relacionamento próximo, este segundo ator será chamado de tu (ou vós, no caso de um
grupo de “tus”). Porém, quando eu mantém algum tipo de interação com um ou mais
interagentes que ainda não conhece ou com quem mantém um relacionamento distante,
sem intimidade, estes serão aqui referidos por ele ou eles.
Este artigo utilizará o pronome neutro inglês it para referir-se à programas
com os quais eu interage e a pessoas ou mecanismos que enviam mensagens “massivas”
como spam e vírus e cujas respostas de eu são normalmente ignoradas ou resultam no
disparar automático de um software “maligno” ou de um website. It pode inclusive se
apresentar com tu ou ele, mostrando nome, e-mail ou foto destes como remetente. Estes
dados podem ser coletados através de um vírus de tipo “Cavalo de Tróia”, de spyware ou
através de phishing22. Enquanto as relações descritas no parágrafo anterior podem
estabelecer-se como interações mútuas, tendo em vista sua invenção compartilhada e sua
recursividade, os últimos casos não passam de interações reativas, em virtude de sua
20 Esta afirmativa baseia-se na discussão de Watzlawick, Beavin e Jackson (1967) sobre interação social e
Teoria dos Sistemas.
21 Este último interagente pode também ser chamado de reagente, em virtude de seu “comportamento”
determinístico limitar-se ao par estímulo-resposta.
22 Site falso, parecido com outro real, que busca roubar informações pessoais como usernames e senhas.
http://www.ufrgs.br/limc
7/15
progressão determinística, que perseguem o estrito modelo ação-reação (Primo, 2005c),
mesmo que eu deseje o contrário.
Chamar-se-á de nós o grupo formado por eu e vós. Neste relacionamento,
todos os participantes se conhecem; em virtude do relacionamento próximo, reconhecemse
com parte de um mesmo grupo que compartilha não apenas interesses, mas também
afetos de maior intensidade; a conversação pode ser conduzida levando-se em conta a
singularidade dos outros com quem se fala. Porém, quando eu interage em um grupo onde
nem todos se reconhecem ou mantém um relacionamento próximo, dir-se-á que faz parte
de nós/todos. Trata-se de um grupo de menor coesão, cujos limites são criados
basicamente em torno de interesses. Neste caso, a afetividade não tem o mesmo impacto
no ingresso e na permanência no grupo que teria entre nós23. Finalmente, existe um
“macro-interagente” com quem eu pode interagir, ao mesmo tempo que o compõe, que
será denominado coletividade24. Esta é constituída por vós, eles, pelo próprio eu e pela
estrutura informática de interconexão e estoque.
Deve-se observar que tanto eu, quanto tu e ele podem ocultar suas identidades
na Web. No primeiro caso (chamado no jargão da Internet de lurking), tu/oculto pode ler
o blog de eu sem fazer qualquer comentário durante um dado período de tempo. Ou seja,
eu não pode perceber a presença de tu. Eu/oculto pode visitar diariamente o Flickr de ele
sem que sua visita seja registrada. Diferentemente destes casos de presença silenciosa,
existe outra forma de interação anônima, mas cuja participação é ativa e cooperativa.
Eu/anônimo pode participar da escrita coletiva de verbetes na Wikipédia sem que precise
se “logar” no sistema. De fato, trata-se da maneira mais comum de participação naquela
enciclopédia online, sem que isso seja visto como problema. Na verdade, a maior parte da
produção registrada pode ser entendida como sendo da coletividade e é para ela que cada
contribuição de eu é direcionada.

Relacionamento e recursividade

A interação social é caracterizada não apenas pelas mensagens trocadas (o
conteúdo) e pelos interagentes que se encontram em um dado contexto (geográfico,
social, político, temporal), mas também pelo relacionamento que existe entre eles25.
Portanto, para estudar um processo de comunicação em uma interação social não basta
olhar para um lado (eu) ou para o outro (tu, por exemplo). É preciso atentar para o
“entre”: o relacionamento. Trata-se de uma construção coletiva, inventada pelos
interagentes durante o processo, que não pode ser manipulada unilateralmente nem prédeterminada.
23 As chamadas comunidades virtuais podem ser criadas e atualizadas por nós ou por nós/todos.
24 A coletividade não pode ser vista como sinônimo do conceito de “multidão” (Hardt e Negri, 2005), pois este
tem implicações políticas e econômicas que fogem ao escopo deste trabalho. Além disso, a multidão opera não apenas
através da coletividade, mas também via nós e nós/todos.
25 Esta abordagem se ergue em torno da proposta original de Gregory Bateson de uma epistemologia da forma,
que busca destacar os padrões de interação em vez dos atos individuais, os inter-relacionamentos em vez da causalidade
unilateral.
http://www.ufrgs.br/limc
8/15
Mas como podem ser estudadas as interações interpessoais, como entre eu e
tu, ou eu e vós? Para tanto será aqui utilizada a proposição de Fisher (1987) sobre as
características qualitativas dos relacionamentos. Em virtude da recorrência das interações
(mesmo que descontínuas), através da qual alguns padrões interativos vão sendo
desenvolvidos entre os parceiros, a sincronia entre eu e tu (ou vós) pode ser percebida: os
interagentes podem antecipar, com cada vez mais sucesso, que ações são apropriadas em
dado momento, o que pode ofender e quando26. Tal relacionamento apresenta
reciprocidade (uma compreensão equivalente dos interagentes sobre a natureza e
qualidade de seu relacionamento), intensidade e intimidade (a familiaridade entre eles). O
relacionamento entre eu e tu pode ainda ser caracterizado em virtude dos graus de
confiança e compromisso em cena. Em outras palavras, a medida que cada parceiro se
inclui na relação e se compromete com ela. É claro que tais características citadas variam
constantemente durante o tempo, em virtude dos atos interativos investidos. A partir
disso, a forma com que cada interagente define seu relacionamento com o outro pode
flutuar. Durante o processo, o relacionamento pode tanto se fortalecer quanto perder
intensidade, chegando até o limite de seu rompimento.
Portanto, eu e tu mantém contato repetido, recursivo e íntimo. A historicidade
dessa interação tem impacto sobre os interagentes e o próprio relacionamento entre eles.
Em outras palavras, a interação entre eu e tu não é atomizada. Mais do que um acúmulo
de ações seqüenciais ou uma troca “bancária” (de tipo “toma-lá-dá-cá”), os interagentes
constroem entre si um relacionamento. As ações manifestas e a interpretação dos
comportamentos (do outro e de seus próprios) se desenvolvem também em virtude da
relação “inventada” em conjunto durante o percurso da interação, mesmo que haja
grandes lapsos temporais entre cada encontro. Cada novo intercâmbio atualiza esse
relacionamento, que exercerá novos condicionamentos nos atos futuros. Trata-se pois de
um processo recursivo. Contudo, não se pode apagar atos anteriores, como se deleta um
arquivo que deixa de interessar. Outrossim, atos subseqüentes podem motivar
resignificações de interações anteriores.
Sendo uma interação social, o relacionamento entre eu e ele tem também
evolução recursiva, mas apresenta pouca intimidade e menor sincronia. Isso não quer
dizer que não possa existir confiança entre aqueles interagentes. O relacionamento pode
inclusive apresentar grande reciprocidade: ambos preferem manter o relativo
distanciamento e a roteirização das ações. Com o tempo, ele pode se tornar tu, em virtude
da evolução dos atos interativos que passam a dar novo significado para a natureza do
relacionamento construído.
Finalmente, poderia-se dizer, de forma vulgar, que tu é um amigo próximo de
eu, e ele um conhecido, amigo ou mesmo um colega de trabalho (com pouca ou nenhuma
interação fora desse ambiente). O item seguinte ocupar-se-á do significado de “amigo”
em alguns sistemas e redes da Web 2.0.
26 Em situações de conflito, contudo, a ofensa pode ser justamente a estratégia escolhida.
http://www.ufrgs.br/limc
9/15
Trivialização do “amigo”?

Tu pode ser explicitamente registrado como tal no sistema informático em
uso por eu. No Orkut, por exemplo, ao receber pedidos de pessoas para serem seus
“amigos”, eu pode aprovar solicitações apenas daqueles que reconhece como tu. Nessa
rede social, eu pode ainda definir se um interagente é seu melhor amigo, apenas um
conhecido, etc (ainda que isso não tenha maior repercussão no sistema informático). Já
no Flickr, pessoas registradas como “amigos” podem ganhar alguns privilégios, como ver
certos conjuntos de fotos privadas e incluir notas acima de imagens de eu.
Contudo, apesar de poder-se acessar informações sobre quem eu registra
como “amigo” nesses sistemas, um observador externo não pode ter certeza que tais
pessoas são de fato vós sem que acompanhe as interações entre esses sujeitos no tempo e
os entreviste. Apesar de não buscar aqui apresentar uma lista exaustiva de circunstâncias
que motivam o registro no sistema de possíveis laços que na verdade não existem, é
importante relatar alguns casos em que o registro no sistema e a própria apresentação
pública do outro como “amigo” não comprova um relacionamento íntimo real entre eu e
outros. Por exemplo, o registro do blog de um terceiro no blogroll de eu, a presença do
nome (ou nick) de alguém na lista de “amigos” de eu no Orkut ou no Flickr27 pode ser
motivada por outras razões. Em blogs existe o fenômeno de permuta de links (Primo e
Recuero, 2004), através do qual blogueiros acordam incluir links recíprocos, apesar de
não se conhecerem nem lerem os respectivos blogs. Isso se dá com intuito de
aumentarem a visitação de seus sites ou melhorarem sua posição na listagem do
mecanismo de busca do Google. Ou seja, o blogroll não garante que todos links sejam
para páginas de vós e nem mesmo que exista qualquer interação com os blogueiros
listados. Por outro lado, muitas conversações entre eu e vós podem ser observadas nas
janelas de comentários dos respectivos blogs, apesar de um não listar o outro em sua lista
de blogs favoritos.
Em redes de relacionamento, como Orkut ou Gazzag, um grande número de
“amigos” pode ser importante para demonstração, ainda que artificial, de popularidade.
Por outro lado, eu pode adicionar pessoas que não reconhece por temer cometer alguma
“gafe”. Portanto, muitas pessoas que fazem parte da rede de “amigos” de eu podem na
verdade serem eles com quem eu nunca conversou. Por outro lado, mesmo que eu
responda a recados públicos (scraps) publicados por ele na página do primeiro no Orkut
(ou em seu blog ou página no Flickr), e que esta interação se repita no tempo, isso não
garante que os laços entre eu e ele se fortaleçam. Tanto um quanto o outro podem
deliberadamente querer manter o relacionamento com o atual distanciamento. Outrossim,
recados que eu receba no Orkut, mesmo que sejam identificados como de autoria de
algum tu, podem na realidade ter sido enviados automaticamente por it, contendo algum
tipo de propaganda ou link para um site comercial, uma página falsa ou vírus. It pode
também publicar comentários elogiosos no blog de eu, através de um texto aparentemente
íntimo, mas que não passa de um spam massivo enviado automaticamente.
27 No Flickr, interagentes podem ser registrados como “amigos” sem que precisem aceitar ou reconhecer tal
tipo de relacionamento.
http://www.ufrgs.br/limc
10/15
Em tempo, a intenção de ser considerado “amigo” em uma rede social online,
mesmo que não exista qualquer relacionamento anterior, não constitui necessariamente
um ato de má-fé. No Flickr, o registro de ele como “amigo” na conta de eu pode ser
justificado apenas para que um link para a página de ele, cujas fotos são admiradas por
eu, seja listado em sua própria página, facilitando sua navegação até aquele espaço. Ele
pode retribuir concedendo o rótulo de “amigo” a eu, apesar de não o conhecer e nunca ter
trocado mensagens com ele. Ou seja, trata-se de uma interação única manifestada entre
eles, ainda que de forma bastante impessoal.

A coletividade

Quando eu faz download de um arquivo da rede P2P, quando encontra um
texto na Wikipédia ou um bookmark que lhe são relevantes em um serviço de social
bookmarking, pode-se perguntar: quem fez tais ofertas? Com quem ele interage? A
resposta para essas questões é a coletividade. Invertendo-se a situação: quando eu oferece
um arquivo na rede, quando edita um verbete ou sua página de webpages favoritas no
del.icio.us, com quem ele contribui? Mais uma vez, a coletividade.
É preciso esclarecer, contudo, que nós/todos e coletividade não são
equivalentes. Nós/todos podem manter uma conversação, de tipo umóum (onde cada
falante direciona sua atenção a outro específico, enquanto todos os outros participantes
podem testemunhar o diálogo), umótodos e todosótodos. Já entre eu e a coletividade
não existe um processo rigorosamente conversacional. Em seus intercâmbios não existe
um encadeamento discursivo, uma troca de turnos, ainda que de forma fragmentada como
ocorre em interações na janela de comentários de blog (Primo e Smaniotto, 2006). Sim, o
trabalho coletivo, a produção e circulação de bens públicos podem produzir efeitos em
rede, mas se não pode confundir esse processo com uma conversação entre nós/todos, sob
risco de trivializar-se a dinâmica conversacional como metáfora generalista para justificar
qualquer tipo de troca (e que, portanto, passa a nada explicar).
Apesar dos participantes da coletividade não se conhecerem e uma
conversação que os envolva não seja possível, os recursos e bens produzidos são
públicos, compartilhados por todos os membros. Cada verbete da Wikipédia possui
vinculada uma página para debate, mas a produção coletiva não depende dessa discussão.
Um verbete pode ser escrito colaborativamente por diversos co-autores sem que eles
precisem planejar cada passo ou atualização. As decisões vão sendo tomadas durante o
processo e não por antecedência. Erros, imprecisões e informações incompletas podem
ser corrigidas durante a seqüência de contribuições.
Mas quem iniciou a produção dos bens públicos compartilhados pela
coletividade? Isso pouco ou nada importa. Quando eu encontra links de seu interesse
através de uma busca no del.icio.us, pode obter informações sobre quem o registrou. Mas
pode prescindir desse dado, já que o que interessa é o endereço (URL) e as tags
registrados. Na Wikipédia, cada verbete possui um histórico de alterações. Os textos das
edições anteriores encontram-se ali disponíveis, além de dados sobre o dia e hora em que
http://www.ufrgs.br/limc
11/15
foram feitas e sobre quem as produziu28. Mas é improvável que eu consulte o histórico
antes de fazer sua edição29. Importa conhecer o estágio atual do texto.
Apesar de tais esclarecimentos, pode-se ainda perguntar: que tipo de
relacionamento é mantido entre eu e a coletividade? Robert Kaye30, analisando interações
em redes P2P, entende que o que se estabelece não seriam nem laços fracos31, mas sim
laços randômicos, pois não se sabe e não importa de quem se está baixando um arquivo.
Embora o último argumento esteja correto, Kaye equivoca-se em sua conclusão. Ora, não
existe qualquer laço entre eu e a coletividade, apesar de estarem participando de um
processo social.
Quando eu busca arquivos em alguma rede P2P, não importa quem são as
pessoas que dispõem daqueles dados em seus computadores. O que eu oferece em troca
são os arquivos que baixou anteriormente, ampliando o estoque da rede. Nesse tipo de
rede, esse retorno é normalmente compulsório: eu só pode baixar arquivos se oferecer os
seus, e/ou a velocidade de seus downloads varia em relação ao quanto disponibiliza32. Tal
interação progride como “troca bancária”, de maneira burocrática, sem que se desenvolva
um relacionamento social. Ocorre apenas uma interação reativa (Primo, 2005c), regulada
por protocolos digitais.
Enquanto entre nós/todos as reputações são construídas socialmente, sendo
resultante da historicidade relacional, do capital social dos interagentes33 e de seu
compromisso com o grupo, no Slashdot elas são tratadas de forma quantitativa. Embora
possa parecer que a historicidade da interação seja considerada, a “reputação” (usada aqui
de forma bastante metafórica, ainda que tenha efeitos na coletividade) é calculada em
virtude do ato imediatamente anterior (o último comentário escrito ou notícia submetida)
e do valor numérico de sua “reputação” naquele momento. Se a interação social apresenta
a característica sistêmica de não-somatividade (é diferente da mera soma das ações ou
das características individuais de cada interagente), no sistema de gestão do Slashdot não
se percebe um impacto realmente recursivo, já que basta a atualização quantitativa de um
número isolado no instante. Sendo assim, eu é visto como um valor numérico enquanto a
notícia ou comentário que enviou e sua “reputação” são julgados pelos moderadores da
coletividade34.
Se nas interações entre nós/todos o aspecto relacional tem um impacto na
produção e interpretação dos enunciados (aspecto de conteúdo), isso não ocorre nos
28 Tratando-se de autor registrado, pode-se obter informações sobre seu username e perfil. Caso contrário,
sendo o mais comum nesse processo, obtém-se apenas a informação sobre o número IP do computador de onde partiu o
acesso e edição.
29 Por outro lado, a recuperação no histórico de estados anteriores do verbete é útil e até necessário para a
correção de atos vândalos, como o apagamento de trechos ou substituição por conteúdo pornográfico, por exemplo.
30 http://www.openp2p.com/pub/a/p2p/2004/03/05/file_share.html
31 O autor refere-se a oposição de Granovetter (1973) entre laços fracos e fortes. Por tratar-se de uma
polarização estática, tal tipologia não será aqui utilizada.
32 Existem alguns programas que permitem que essa determinação seja ultrapassada, burlando a arquitetura de
participação.
33 Para uma discussão sobre capital social no Orkut e em blogs, ver Recuero (2005).
34 Nos fóruns relacionados a cada notícia no Slashdot o capital social pode ser construído e reconhecido através
das interações conversacionais mantidas no tempo.
http://www.ufrgs.br/limc
12/15
intercâmbios entre eu e a coletividade. Eu pode inclusive demonstrar algum tipo de
emoção pela coletividade35, mas a coletividade não o reconhece. Por exemplo, não
importa quem opera o programa-cliente de acesso à rede P2P em dado momento36, nem
como se sente. Se a conexão entre eu e a coletividade via BitTorrent seja quebrada, e o
primeiro demonstre irritação com a situação, tal fato não apresentará qualquer efeito nos
atos futuros, tão logo o problema técnico seja resolvido. Mais um exemplo: a ausência de
eu na criação da Wikipédia, causada por sua insatisfação quanto ao encaminhamento do
verbete “Aborto”, não fará com que a coletividade se desinteresse e suspenda a produção
coletiva. Não se pode, pois, equiparar o impacto recursivo da historicidade interacional
atual ou futuro que ocorre entre nós ou nós/todos com o processo de interação entre eu e
a coletividade.
E como fica a questão da confiança nesta última forma interacional? Não há
garantias de disponibilização e atualização de bens específicos nem que ocorram a todo
momento. Ciente disto, eu sabe que não pode confiar que a coletividade lhe assegurará
qualquer oferta que espera encontrar. Certos bens podem existir em um momento e não
em outro. Por outro lado, eu pode deliberadamente oferecer um certo conjunto de
arquivos que ainda não existiam na rede. No caso P2P, tal oferta só ficará disponível
enquanto eu estiver conectado ou se a coletividade propagar os arquivos para outros
servidores. Neste último caso, eu não pode querer acabar com tal oferta, pois não pode
retirar um bem quando ele passa a ser público e compartilhado de forma distribuída.
Como interagente virtual, sua existência é mantida apenas enquanto um
coletivo de pessoas participar desse processo constante de atualização. Entretanto, a
coletividade não pode ser prevista nem rigidamente determinada. Nem eu, nem tu,
tampouco ele podem determinar como a coletividade reagirá. Em outras palavras, não se
pode impor como deve ser: a coletividade apenas é. Apesar de ser uma criação coletiva, a
coletividade desenvolve uma relativa autonomia. Eu, vós, eles e outros sujeitos
desconhecidos de eu inventam e atualizam a coletividade, mas também são, em certa
medida, inventados pela coletividade.
Quanto às contribuições de eu para a coletividade, não se pode supor que o
faça sempre de forma consciente e deliberada — situação esta que caracterizaria a grande
maioria das interações entre nós ou nós/todos. Evidentemente, em muitos casos eu quer
colaborar; por exemplo, criando um verbete ainda inexistente na Wikipédia. Em outros
casos, contudo, a contribuição de eu para a coletividade é indireta e não intencional.
Veja-se o caso de quando eu acrescenta certas referências a sua página no del.icio.us.
Tais atos podem partir de uma necessidade individualista de eu. A criação dessa listagem
de links pode, por outro lado, ser voltada para vós ou eles: eu pode sugerir o endereço de
sua página de referências como sugestão de leituras para um grupo de amigos ou alunos.
Mesmo assim, esses registros acabam refletindo de forma global, convertendo-se em bem
público da coletividade e não apenas em uma posse privada de eu. Eu pode inclusive
cooperar com a coletividade sem saber, de forma compulsória, ao usar um software P2P,
35 Algo do tipo: “O que seria de mim sem esta rede fantástica”, “Adoro a Wikipédia”.
36 Várias pessoas podem sucederem-se no uso de um mesmo cliente de P2P instalado em um computador
compartilhado. Mas, a interação com a coletividade não se altera do ponto de vista relacional.
http://www.ufrgs.br/limc
13/15
por exemplo, que automaticamente compartilha uma das pastas em seu computador. Ou
seja, a cooperação pode ser anônima, não deliberada ou incidental.
É preciso notar que a “arquitetura de participação” pode impor certos
condicionamentos à coletividade. Os sistemas de gestão de reputações e avaliação de
comentários no Slashdot e a proteção ou semi-proteção37 de certos verbetes por
administradores na Wikipédia apresentam formas de regulação da produção da
coletividade. Como se viu anteriormente (Primo, 2005b), os ambientes abertos de
cooperação online atraem não apenas colaboradores comprometidos com a produção e
circulação de bens públicos, mas também aproveitadores (free-riders) e vândalos. Para
evitar ou contornar prejuízos, os sistemas de regulação citados atribuem o status de
moderador ou administrador38 a qualquer participante com um histórico de colaboração
regular. Esses interagentes ganham poderes de julgamento de textos e participantes,
podendo bloqueá-los ou até mesmo eliminá-los39. Esses recursos e a hierarquia
desenvolvida não prejudicam o trabalho colaborativo e a evolução e abertura do processo
colaborativo. Ora, a coletividade não é composta apenas de altruístas. Não se pode
associar a ela um certo padrão moral necessário, nem supor que sua produção seja sempre
valiosa ou precisa. Por outro lado, seria incorreto concluir que os processos comunais
acabam com qualquer hierarquia ou relação de poder ou, inversamente, que estas sejam
uma ameaça fatal para aqueles.
Enfim, a coletividade não é apenas um mecanismo tecnológico e um estoque
digital40. O conteúdo oferecido pela coletividade é em sua maior parte41 produzido por
eu, vós e eles, e por outros sujeitos que eu nunca interagiu. Quando eu escreve em um
verbete na Wikipédia, ele está a princípio interagindo com a coletividade. Ele passa a
participar de um texto coletivo escrito pela coletividade. As alterações que eu efetuar no
texto ocorrem em cooperação com a coletividade. Por outro lado, se eu passa a discutir o
verbete no fórum a ele vinculado com pessoas registradas no sistema, interações eu-tu e
eu-ele se estabelecem42. Quanto a redes P2P, quando eu conecta seu computador à rede e
passa a disponibilizar arquivos, ele coopera com a coletividade. Já no Slashdot, pode-se
dizer que a gestão das publicações e das próprias interações e reputações em jogo é
efetuada pela coletividade.

Referências bibliográficas

BATESON, Gregory. Mind and nature: a necessary unity. Nova Iorque: Bantam New Age
Books, 1980.
37 http://en.wikipedia.org/wiki/Wikipedia:Semi-protection_policy
38 http://en.wikipedia.org/wiki/Wikipedia:Administrators#Protected_pages
39 Os chamados administradores na Wikipédia podem também editar textos protegidos (normalmente sobre
temas ou personalidades muito polêmicas, alvo frequente de ataques vândalos).
40 Nem se pode confundir um sistema informático (a Wikipédia, o del.icio.us) com a coletividade.
41 Outras informações podem ser geradas automaticamente por serviços informáticos.
42 Eu/oculto pode também observar debates entre eles e vós nessa página de fórum.
http://www.ufrgs.br/limc
14/15
FISHER, B. Aubrey. Interpersonal communication: pragmatics of human relationships.
Nova Iorque: Random House, 1987. 416 p.
GARTON, Laura; HARTHORNTHWAITE, Caroline; WELLMAN, Barry. Studying Online
Social Networks. Journal of Computer Mediated Communication, V 3, issue 1 (1997). Disponível em
. Acesso em 12/04/2004.
GRANOVETTER, Mark. The Strength of Weak Ties. American Journal of Sociology, n.
78, Maio de 1973:. P. 1360-1380.
MARTINS, Beatriz C. Cooperação e controle na rede: um estudo de caso do website
Slashdot.org. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Cultura), Escola de
Comunicação, CFCH, 2006.
MATHES, Adam. Folksonomies - Cooperative Classification and Communication
Through Shared Metadata. Illinois, December 2004. Disponível em
http://www.adammathes.com/academic/computer-mediated-communication/folksonomies.html. Acessado
em 25 de abril de 2006.
HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do Império.
Rio de Janeiro: Record, 2005.
O'REILLY, Tim. What Is Web 2.0 - Design Patterns and Business Models for the Next
Generation of Software. O'Reilly Publishing, 2005.
PRIESTMAN, Chris. Web radio: radio production for internet streaming. Oxford: Focal
Press, 2002.
PRIMO, Alex ; SMANIOTTO, Ana Maria Reczek . A conversação na comunidade de blogs
insanus. e-Compós. Brasília, n. 5. Abril. 2006. Disponível em: http://www.compos.org.br/ecompos/
adm/documentos/abril2006_alex_ana.pdf
PRIMO, Alex. Para além da emissão sonora: as interações no podcasting. Intexto, Porto
Alegre, n. 13, 2005a. Disponível em http://www.intexto.ufrgs.br/
PRIMO, Alex . Conflito e cooperação em interações mediadas por computador.
Contemporânea, Salvador, v. 3, n. 1, p. 38-74, 2005b.
PRIMO, Alex. Enfoques e desfoques no estudo da interação mediada por computador. In:
André Brasil; Carlos Henrique Falci; Educardo de Jesus; Geane Alzamora. (Org.). Cultura em fluxo:
novas mediações em rede. 1 ed. Belo Horizonte: PUC Minas, 2005c, v. , p. 36-57.
PRIMO, Alex. ; RECUERO, Raquel da Cunha . Co-links: proposta de uma nova tecnologia
para a escrita coletiva de links multidirecionais. Fronteiras Estudos Midiáticos, v. VI, n. 1, p. 91-113,
2004.
PRIMO, Alex ; RECUERO, Raquel da Cunha . Hipertexto cooperativo: uma análise da
escrita coletiva a partir dos blogs e da Wikipédia. Revista da FAMECOS, Porto Alegre, n. 22, p. 54-65,
2003a.
RECUERO, Raquel . Um estudo do capital social gerado a partir de redes sociais no Orkut e
nos Weblogs. Revista da FAMECOS, Porto Alegre, v. 28, n. dez 2005.
http://www.ufrgs.br/limc
15/15
ROGERS, L. Edna. The meaning of relationship in relational communication. In:
CONVILLE, R. L.; L. E. ROGERS (Eds.). The meaning of "relationship" in interpersonal
communication. Westport: Praeger, 1998. p. 202.
WATZLAWICK, Paul; BEAVIN, Janet Helmick; JACKSON, Don D. Pragmática da
comunicação humana: um estudo dos padrões, patologias e paradoxos da interação. São Paulo:
Cultrix, 1967. 263 p.

Nenhum comentário: