domingo, 18 de outubro de 2009

Matéria no O Tempo hoje:


Em cena. Joana Oliveira ao lado da avó, dona Virgínia, prepara mais um momento da filmagem de "Morada", que será seu primeiro longa-metragem

FOTO: Bianca aun/divulgação
Em cena. Joana Oliveira ao lado da avó, dona Virgínia, prepara mais um momento da filmagem de "Morada", que será seu primeiro longa-metragem

Magazine

Cinema. Jovens realizadores mineiros extravasam sentimentos usando parentes como protagonistas de seus filmes
Câmeras na sala de casa
Marcelo Miranda

Novas tecnologias, facilidade de acesso à realização, ousadia estética e temática, liberdade absoluta de criação. Estas e outras tantas características potencializadas no audiovisual do século XXI criaram um novo subgênero de cinema artesanal: os filmes na sala de casa.

Que o diga a informal corrente de jovens diretores mineiros que, sem saber, parecem estar modelando algum tipo de movimento cuja espinha dorsal são as imagens de seus parentes. Avós, primos, pais, tios: todos deixam a esfera privada para se transformar em representações de angústias, ideias e extravasamentos afetivos de quem empunha a câmera diante deles.

Joana Oliveira, por exemplo, viveu parte significativa da infância e juventude na casa de sua avó materna, dona Virgínia, 81, na avenida Antônio Carlos, em Belo Horizonte. O local, ocupado por familiares de Joana desde 1951, recebeu aviso de desapropriação pela prefeitura apenas dois anos depois. Em todo esse período, nos últimos 56 anos, dona Virgínia esperou a ordem de demolição do lar - adiada, mas sempre mantida, a cada administração municipal.

Joana, hoje aos 31 anos de idade, viveu o drama desde pequena e, adulta, decidiu documentar a situação. "Foi um processo bastante difícil para mim. Eu precisava dar alguns intervalos e deixar esse trabalho de lado por uma algum tempo antes de continuar", conta Joana. "Fiquei muito sensível ao que estava fazendo".

A cineasta intitulou de "Morada" este seu primeiro longa-metragem, já em fase de finalização. Desde setembro de 2007, foram dois anos de filmagens, inclusive o fatídico dia, em abril de 2009, quando finalmente a casa da avó veio abaixo com o avanço dos tratores da prefeitura - dentro da política local de ampliação da Antônio Carlos.

Realizadora de diversos documentários em curta, Joana Oliveira diz que, pela primeira vez, sentiu-se mais fortemente desafiada, justamente por ter como personagem de filme um parente tão próximo e querido. "Sempre tive consciência de que não seria fácil filmar a minha avó. Ela, como ex-cantora de ópera, tem noção do que seja um espetáculo e certamente ia, de alguma forma, interpretar para a câmera", revela a diretora. "Precisei de horas de conversa informal para ela falar e fazer o que eu pedia. Muito por causa disso, acabei me tornando, eu mesma, personagem no filme".

Presenças. A "desobediência" familiar foi fundamental para Leonardo Amaral desenvolver o que acabou se tornando o curta "Minha Avó Comemora Aniversário com Suas Amigas de Hidroginástica", a ser exibido no CineBH (Mostra de Cinema de Belo Horizonte) amanhã, às 18h30, na praça Duque de Caxias, em Santa Teresa.

"O projeto nasceu como uma ficção. No entanto, a minha relação de proximidade com a minha avó, diante da câmera, me fez perceber um outro filme ", relembra ele. "A partir de determinadas ações dela (que não eram o que eu pedia para ela fazer), de sua representação, do seu corpo e presença, deixei que outros aspectos invadissem a cena e dei vazão para que o envolvimento dela com cada cena ganhasse um tipo de cumplicidade que só existe por ser uma relação de avó e neto. Com um ator, por exemplo, seria outro filme, bem menos complexo".

Não tão interessado no sentido puramente afetivo do âmbito familiar, João Toledo fez de seu curta "Caixa Preta", recentemente concluído, uma forma de questionar a hipocrisia vista por ele nas típicas reuniões de parentes na época do Natal. "O filme surgiu de uma visão crítica que eu tenho desse tipo de encontro", conta João. "Sendo ateu e não participando muito das coisas mais apegadas a valores cristãos, sempre fiquei um pouco de fora e fui espectador do meu próprio Natal".

"Caixa Preta" registra avós, primos, tias, irmã e pais de João ao longo de uma noite natalina. "Naquelas imagens, eles já não são mais eles; são meus personagens e atendem à lógica da minha visão".



Trio. Gabriel Martins, Leonardo Amaral e João Toledo: em começo de carreira como diretores, todos já realizaram filmes com parentes

FOTO: alexandre guzanche
Trio. Gabriel Martins, Leonardo Amaral e João Toledo: em começo de carreira como diretores, todos já realizaram filmes com parentes

Cinema
Memórias que ganham forma
Marcelo Miranda

Todos guardamos lembranças de algum passado familiar e às quais sempre retornamos ao longo da vida. No caso do cineasta Igor Amin, ele usou da facilidade tecnológica - um celular com filmadora - para transformar a memória num trabalho artístico.

Igor fez dois vídeos de pequena duração com os avós, Jacob e Uani. "Esses vídeos surgiram a partir de duas imagens de dez segundos, filmadas do celular e que até então não tinham valor. Eram simples registros dele dando um mergulho na piscina e dela regando as plantas", conta. "Apesar da simplicidade, são cenas que estavam na minha memória desde criança".
Em "Divergrandpa" e "Watergrandma", exibidos em alguns festivais, Igor usa vozes eletrônicas e humor no que, para ele, é algo tão próximo e afetivo. "Foi como arrancar aquelas simples ações de dentro da minha cabeça".

Gabriel Martins também não pretendia fazer um filme com as imagens que aleatoriamente captou da mãe em diversas ocasiões. Porém, acabou por fazer um vídeo, intitulado "Beatriz" - justamente o nome da mãe de Gabriel. "Trabalho a relação de um filho filmando a mãe, e o que pode existir de distanciamento nesse ato", comenta ele.

Mesmo certo de suas intenções, Gabriel parece ter ficado acuado no traquejo com o próprio material. "Não há como separar bem o que é o filme do que é a pessoa que o realiza, principalmente se for sobre alguém de convívio muito intenso. A imagem da minha mãe é um fragmento de quem eu tenho comigo cotidianamente, então não sei simplesmente sair da vida e entrar no filme. Tudo fica meio misturado".

Mesmo assim, ele já prepara um novo projeto, desta vez mais próximo da intimidade do que "Beatriz". "Estou realizando um curta chamado ‘Amor’, que consiste em imagens de arquivo da minha família, somadas a eventos encenados e espontâneos onde eu moro e mostrando meus pais, irmão e cães. Há, desde o início, a vontade de trabalhar com todos eles e de decupar o nosso cotidiano".

João Toledo, que fez "Caixa Preta" (sobre a família na noite natalina), também tem outra ideia engatilhada. "Vou filmar um ou dois dias da vida do meu pai como se fosse uma ficção improvisada", adianta. "Claro que, por ser algo aberto ao acaso, pode dar errado. Tende a ser um filme a ser descoberto no processo de montagem".

distância. A objetividade é um dado praticamente impossível a quem se dispõe a filmar a família e depois transformar esses excertos num discurso audiovisual. Joana Oliveira, que fez o longa "Morada", assume ter tentado concluir o trabalho o quanto antes conseguisse, na esperança de que a casa da avó permanecesse de pé ao menos através do filme. "Mas eu tinha consciência, o tempo inteiro, de que o fim seria quando a desapropriação acontecesse", afirma ela.

Leonardo Amaral, autor de "Minha Avó Comemora seu Aniversário com as Amigas de Hidroginástica", chamou justamente o amigo João Toledo para montar o curta-metragem. "Precisava de um olhar não totalmente ‘contaminado’, como estava o meu, mas que, ao mesmo tempo, fosse capaz de captar o que existe de duradouro naquilo que vai se tornar um filme de verdade e, no fim das contas, se comunicar com quem for assisti-lo".

"Divergrandpa", de Igor Amin



"Watergrandma", de Igor Amin



A japonesa Naomi Kawase: vários documentários com pai e avó

FOTO: festival de cannes/divulgação
A japonesa Naomi Kawase: vários documentários com pai e avó

Pelo mundo
Família já foi o centro de diversos filmes
Filmar parentes e transformar as imagens em puro cinema é algo bastante presente na filmografia mundial. Está em cartaz em Belo Horizonte "O Nome Dela É Sabine", em que a francesa Sandrine Bonnaire monta um filme a partir de duas décadas de sua relação com a irmã, cujo autismo foi diagnosticado apenas na adolescência.

Um dos principais nomes nesse sentido é o da japonesa Naomi Kawase, cuja obra ganhou retrospectiva completa em setembro, em Belo Horizonte, no Indie - Mostra de Cinema Mundial. Desde seu primeiro document filme, "Abraçando" (1994), Kawase retratou questões de família, a maioria ligada à busca pelo pai desconhecido e as relações com a avó.

O mais forte de todos esses primeiros trabalhos é "Nascimento e Maternidade" (2006), em que a cineasta retorna a antigas imagens para confrontar as dúvidas sobre seu passado. Em determinado momento, Kawase registra uma violenta discussão entre ela e sua avó; em outro, pede a alguém que filme frontalmente o próprio parto.

O norte-americano Jonathan Caouette fez o perturbador "Tarnation" (2003), no qual narra - através de vídeos caseiros, gravações, fotos e fitas de áudio - a desestruturação de sua infância e a relação tumultuada com a mãe esquizofrênica.

O russo Nikita Mikhalkov criou, em "Anna dos 6 aos 18", um amplo painel de seu país, a partir de conversas que manteve com a filha criança ao longo de uma década. (MM)



Igor Amin e seu celular: tirando da cabeça memórias de infância

FOTO: Lucy Ana Fonseca/divulgação
Igor Amin e seu celular: tirando da cabeça memórias de infância

Diretores falam sobre possível superexposição caseira
É inevitável, em se tratando de filmes realizados dentro de casa, com parentes, questionar se existe anseio de superexposição por parte dos diretores. "Minha família sabe que aqueles momentos capturados pertencem ao campo das imagens, pertencem a mim e, quando se tornam filme, passam a ser de quem as vê", acredita João Toledo.

Por sua vez, Joana Oliveira não sabe prever a reação da avó ao assistir a "Morada". "Já disse a ela que, se for para assistir e sofrer, prefiro não mostrar o filme", conta.

Gabriel Martins acha que alguns elementos de potencial íntimo em "Beatriz" não são captados pelos espectadores. "Funciona mais internamente, pois várias imagens ali são bastante familiares no meu universo, o que não torna o filme melhor ou pior por causa disso". (MM)

Publicado em: 18/10/2009



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