terça-feira, 15 de setembro de 2009

Poéticas da Espontaneidade: Novos formatos, Novos olhares

Muito se discute sobre os efeitos que os novos formatos e as novas tecnologias trazem para o audiovisual. Desde o uso já bastante popularizado de câmeras de celular, que transformam qualquer cidadão comum em um possível cinegrafista, trazendo aí uma enxurrada de shows e apresentações ao vivo mal-filmadas ou ainda testemunhos e “furos” jornalísticos por não-jornalistas, gerando inclusive uma discussão na mídia e forçando essa mesma a se reinventar. Chegando até mesmo a um novo caminho estético que de certa forma vai contra o atual fetiche pela alta resolução, fetiche esse seja de espectadores que buscam uma imagem cada vez mais cristalina e “real”, ou de realizadores em busca de maiores linhas de resolução e profundidades de foco glamourizadas. Obviamente que julgar uma obra por sua resolução, seja ela alta ou baixa, pensando exclusivamente em sua potência como realidade ou dispositivo sensorial, nunca foi um bom método.

Estes novos formatos, sejam câmeras de celular, sejam câmeras digitais de bolso ou webcams, vem gerando diversas estéticas dentro e fora do campo das artes visuais. Estéticas que, além de subverter a baixa resolução proveniente dessas mídias e agregar isso de maneira inteligente a sua linguagem, acabam gerando aí uma importante discussão sobre o público e o privado. Com o aparecimento de tecnologias tão fáceis e acessíveis, podemos concluir que qualquer cidadão hoje em dia é um dispositivo de vigilância em potencial. Uma câmera, não importa o tamanho ou a resolução, é sempre um objeto perigoso. O fato desse simples objeto que cabe na palma de uma mão ser o que separa você do mundo cria uma espécie de fragilidade que parece ser ainda um sintoma subestimado pelos grandes meios de comunicação. A imagem na grande mídia não tem sua potência classificada pelo poder de seu registro ou representação, mas apenas por sua capacidade viral (na internet) ou de assimilação apelativa e comercial (na TV em geral).

Still do vídeo "A triste história de dentinho, um garotinho bêbado!"

Um bom exemplo dessa exposição indireta que no ambiente da web se transforma automaticamente em viral-piada ao invés de uma representação mais conceitual (ainda que essa representação exista de maneira bastante intensa) é o vídeo “A triste história de dentinho, um garotinho bêbado!” (http://www.youtube.com/watch?v=nf22iyNrxQw). Nesse vídeo, um jovem liga sua pequena câmera e, visivelmente embriagado, desabafa sobre seu atual estado. O vídeo logo se tornou motivo de piada quando caiu no youtube, evidenciando de maneira bastante direta a fragilidade dessa exposição. O adolescente utiliza desse recurso que literalmente está a um dedo de distância e grava uma confissão íntima. A exposição pessoal como linguagem no audiovisual e nas artes plásticas em geral sempre foi um lugar de trânsito intenso. Basta pensar em Sophie Calle, que agora vive um momento de quase “popstar” devido seu grande reconhecimento internacional com o trabalho “Take Care of Yourself”, mas que já nos mostrou isso com ainda mais clareza no elucidante vídeo “No Sex Last Night” (http://www.ubu.com/film/calle_double.html). Nesse trabalho, a artista francesa parte em uma viagem-experimento pelos EUA junto de um desconhecido, o artista americano Greg Shepard, ambos munidos cada um de uma câmera digital, revelando circunstâncias em que a colisão entre o público e o privado constrói estéticas espontâneas e intensas. Ou ainda, mais próximos de nós, o video artista brasileiro Carlosmagno Rodrigues (http://www.youtube.com/user/DORIANGREEN1995), que a cada novo trabalho costuma quebrar novas barreiras dentro dessa “guerra de subjetividades” em que ele parece se inserir a todo momento. Obviamente que o adolescente que gravou sua confissão embrigado em “A triste história de dentinho” não possuía nenhuma intenção ou estratégia conceitual, foi um impulso. Ou seja, foi obra do espontâneo. Gerando, ainda assim, uma discussão, um sintoma e inclusive uma poética. A entrega do jovem em seu pequeno vídeo é tanta que a comoção que sentimos nos remete a mesma comoção compartilhada nos trabalhos mais intensos de Calle e Carlosmagno. Com o os novos formatos, esse tipo de entrega, e consequentemente sua exposição, acaba ficando de certa forma mais acessível para qualquer um, ou ainda para artistas que em um primeiro momento não mantinham esse tipo de relação íntima com a imagem. Causando quase que uma popularização em massa dessas videografias de contato, sejam com bases conceituais “artísticas” ou não, mas que acima de tudo parecem frutos do espontâneo e da facilidade de registro que essas mídias oferecem. Mesmo as novas formas de relacionamento “virtual” que a contemporaneidade vem trazendo, como orkut, facebook, skype e etc, afetam intensamente nossa relação afetiva e pessoal com o mundo e com o outro, além de proporcionar certas necessidades de confissão (twitter, blogs) que acabam nos fazendo reféns dessa espécie de obsessão pelo “What are you doing?”, frase de apresentação de serviços como twitter e facebook. Como se esses novos meios de relacionamento, de alguma maneira, nos impelissem através de pedidos diretos uma entrega pessoal cada vez mais intensa. Até que ponto essa entrega é uma ação despojada? Quando o impulso se torna uma ameaça?

"No Sex Last Night", de Sophie Calle

Carlosmagno Rodrigues, vídeo artista brasileiro

Sophie Calle e Carlosmagno já estão inseridos dentro dessa estética do impulso, do espontâneo e do subjetivo muito antes do surgimento desses micro-formatos, talvez com a popularização do vídeo, quando na época era também um “novo formato”, concebeu-se essa mesma espécie de estética do íntimo. Um impulso e uma certa necessidade de compartilhar essas lutas afetivas, criando momentos intensos que por si só, pelo simples fato de funcionarem como registros até certo ponto naturalistas (ainda que sofrendo de várias interferências), geram essa radicalização do eu pessoal. Esse material todo - bruto ou manipulado, real acima de tudo - se transforma no espelho dessa subjetividade torta, vivida, às vezes encenada, filmada e finalmente compartilhada.

Além dessa exposição pessoal, é necessário evidenciar sintomas semiológicos e políticos nesses novos meios, ainda que o subjetivo esteja também explicitamente inserido aqui, talvez com outras finalidades. No projeto “Nem Só O Que Anda é Móvel” (www.nemsooqueandaemovel.com), de Igor Amin e Vinícius Cabral, dois jovens artistas mineiros, percebemos a urgência em certas discussões e, outra vez, a espontaneidade e rapidez com que tudo foi e ainda é gerado. Partindo de ações bastante diretas, os vídeos que compõem o projeto gozam de uma política de reconfigurações imaginéticas bastante particular. A mídia, e suas representações audiovisuais quase sempre apelativas, tomam a forma de uma espécie de espelho alienado do outro. Os realizadores, em constante questionamentos, divagam sobre todo e qualquer gênero de discussão. Indo do sentimental ao político em poucos segmentos, sempre revelando um certo condicionamento quase inconsciente que nós, filhos dessa mídia, criados em meio a estéticas de guerra e de apelo, carregamos a todo momento, provocando uma espécie de anomalia perceptiva presente no homem contemporâneo. O objetivo do projeto é justamente revelar esse condicionamento, subvertendo nossa percepção de senso comum. Na obra “Moysés, Dentista” (http://www.youtube.com/watch?v=KVBKX5dK1HU) talvez o trabalho mais emblemático do projeto, um telefone celular com a câmera ligada é abandonado em uma sala de espera de um consultório odontológico. Poucos momentos depois, o filme, que já é um dispositivo independente enquanto objeto estranho, começa a acontecer. Pessoas ao redor olham desconfiadas para o celular, que foi deixado dentro de uma cesta e possuía um pequeno bilhete ao seu lado, e perguntam entre si se não haveria uma bomba ali ou coisa do tipo. Além de demonstrar essa possível alienação generalizada, o vídeo é uma prova de que com o simples impulso de abandonar o celular naquela ambiente, naquele dia, foi possível gerar uma obra particular, irônica e que ilustra de maneira inteligente toda essa nossa relação com a vigilância e suas possíveis ameaças.

Obra "Moysés, Dentista"

Ainda em Minas Gerais, outro artista que vem tecendo uma espécie de rede de afetos videográficos é o paraibano Dellani Lima (http://www.youtube.com/user/DellaniLima). Com uma obra em vídeo já bastante extensa, nos últimos anos Dellani vem desenvolvendo espécies de vídeo-diários, fragmentos de resolução inconstante que flertam com a mesma exposição direta dos trabalhos de Carlosmagno, principalmente no que diz respeito a uma apropriação de elementos caseiros e afetos próximos. Amigos, artistas, filhos, esposas e namoradas. Tudo o que de alguma forma diz respeito ao ser que filma, quase que uma auto-definição em consequência do espontâneo. Mas diferente de Carlosmagno, que acredita na interferência e na inconstância de tons para dar vazão a sua memória subjetiva descontínua, Dellani Lima parece cada vez mais ter fé no contemplativo e ainda em uma dilatação de tempo e acontecimento para a aproximações de um certo fluxo de vida-imagem que acontece a todo momento. Como se devido ao pequeno tamanho da câmera, ela agora pode se colocar em todo ambiente e situação, realizando registros que antes eram improváveis.

Outra proposta que se destaca nesse ambiente dos novos formatos é a obra de Juliana Mundim (http://vimeo.com/julianamundim). Com uma abordagem muito mais delicada e de certa forma feminina, a artista vem revelando já há algum tempo deliciosos pocket videos que exalam um tipo de afetividade bastante suave. Através de recortes em que o olhar não busca exatamente a verdade ou a potência daquelas imagens, mas ainda assim, o que, ao filmar, a artista relembra, sente e consequentemente insere em um plano quase intuitivo de sua memória. Adquirindo, dessa maneira, um aspecto ultra pessoal, mesmo que sem uma exposição direta da pessoa que filma. Vemos isso principalmente na micro-série “The things that happen when I think of you”, aonde pequenas inserções, doces e ao mesmo tempo surreais, são inseridas em planos primeiramente banais, mas que agora, com a pessoalidade intuitiva da artista, adquirem uma densidade bastante interessante. Vale citar também o projeto “Pocket Films for Travelers” (http://www.pocketfilmsfortravelers.com/), uma espécie de diário de bordo audiovisual móvel, em que pequenos vídeos traçam uma espécie de mapeamento afetivo pelos lugares do mundo que a artista já passou.

Vídeo da série "The things that happen when I think of you", de Juliana Mundim

Todos esses trabalhos operam como confissões de uma realidade que cada vez mais nos invade, os novos formatos, as redes sociais, as novas formas de comunicação em geral, criam também novas poéticas. É claro que a tal “inclusão digital” também gera muito lixo e reflete a superficialidade em que boa parte do mundo se enterra. A tal arte em novas mídias também esconde muita futilidade e projetos que partem muitas vezes de um fetiche ególatra de seu realizador. Carlosmagno, em certo momento do seu vídeo “Kalashicov”, se questiona: “Quando eu sou idiota nos meus vídeos, e quando eu sou transgressor?”. Essa frase de certo modo reflete a linha tênue que paira entre o espontâneo e o fetiche apelativo. É preciso estar atento na hora de reconhecer certas estéticas e definir o que de fato é um impulso instintivo, que por si só carrega um conceito natural e honesto, e o que é fruto de uma apelação planejada que tem como objetivo um choque infantil e que não passa de mais um gênero comercial em meio a tantos produtos de arte. Nesse texto tentei listar alguns dos projetos e autores que ao meu ver melhor se encaixam nessa poética do impulso, ainda que provavelmente tenha deixado muita coisa boa de fora. De qualquer maneira é muito difícil fazer uma radiografia básica do que acontece nesse ambiente dos novos formatos, especialmente em um espaço em que as coisas vem acontecendo tão rápido. Alguns celulares e pequenas câmeras digitais já começam a ter altas resoluções que, de novo, precisarão encontrar novos meios de subverter a espécie de estética do glamour que o HD e alta definição vem infestando em algumas produções de vídeo, deixando a linguagem de lado e buscando uma certa estética bastante plástica porém sem qualquer conceito.

No final de tudo, o papel desses novos formatos parece ser o mais nobre e necessário da arte: tornar-se acessível. Essa acessibilidade, além de produzir novas percepções poéticas, desloca o audiovisual de um elitismo que felizmente anda encontrando outras alternativas. Tornando todo cidadão um agente subjetivo em potencial, contextualizando, criticando e compartilhando suas impressões, sejam elas quais forem.

Arthur Tuoto (http://www.arthurtuoto.com) trabalha com vídeo, fotografia e novas mídias. Conta com exibições em mais de 40 festivais e exposições no Brasil e ao redor do mundo. Já publicou textos na Revista Muro, Revista Zoom e Revista Juliette.

Em http://www.ufscar.br/rua/site/?p=2255

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