terça-feira, 1 de setembro de 2009

O par ímpar

de Laly Cataguases
Belo Horizonte / MG

O café da manhã era o horário preferido para o Doutor João e o Cabo Madureira. Era o momento de maior tempo que tinham juntos e sempre o aproveitavam ao máximo. O turno de trabalho de ambos era irregular e raramente chegavam do trabalho ao mesmo tempo.

Entre o pão e o jornal, falavam do seu dia anterior, agendavam o lazer do final de semana, trocavam carícias e, por vezes, transavam. Arrastavam os alimentos e se amavam ali mesmo, na mesa.

Conheceram-se num plantão do Dr. João. O policial chegara desacordado no pronto-socorro, vítima de bala, quando realizava uma blitz no morro de uma favela. Moravam juntos havia apenas um mês. E hoje, quando Madureira entrou na cozinha para acompanhar o amante no café da manhã, João já estava sentado à mesa, acordara primeiro, como sempre. Mas estava chorando copiosamente, em prantos, com a cabeça apoiada nas mãos.

Madureira tentava acalentá-lo, mas não fisicamente. Apesar de conhecê-lo havia pouco tempo, cerca de cinco meses, sabia que João se sentia melhor que não o tocassem, quando estivesse deprimido. Isto raramente acontecia, estava sempre de bem com a vida.
Mas o choro não cessava, a dor não parecia ter fim, apesar das palavras de consolo do outro. Era como se João não o ouvisse, concentrado apenas em sua dor.

O princípio de tal sofrimento deu-se um mês antes de o médico se mudar para a casa do policial. Foi quando Rony, filho do médico, flagrara os dois numa troca de carícias. Desconfiado da mudança de atitude do pai, decidira segui-lo. Por conta de Madureira, essa mudança de comportamento jamais teria ocorrido, pois decidira não declarar seus sentimentos ao recente amigo.

A amizade começara por causa da delicada saúde do policial. Ele chegara com estado crítico no pronto-socorro, caiu em coma, piorando logo depois. João decidira declará-lo como morto, quando, surpreendentemente, a vontade de viver do policial foi maior que qualquer diagnóstico pró-obituário. João percebera que estava diante de mais um milagre em seu trabalho.

A permanência no hospital por dois meses para seu restabelecimento foi decisiva para o estreitamento da amizade. Trocaram contatos, saíam juntos. Madureira chegou a visitar a casa do médico três vezes. Conheceu Ana, sua esposa, e seus dois filhos: Rony, de 20 anos, e Bárbara, 18. Uma família feliz, os filhos muito apegados ao pai, e uma ótima relação matrimonial.

O médico também visitou Madureira algumas vezes. Morava sozinho, era solteiro, a família residia longe, em outro estado. Até que João percebeu que Madureira não retornava mais suas ligações. Chegou a pensar que estivesse doente e foi procurá-lo. Mas ele havia-se mudado. Conseguiu o novo endereço com um amigo em comum, também policial, que disse ainda que Madureira estava aguardando transferência para outra cidade a pedido próprio.
Sem entender, procurou Madureira - que estava bem de saúde - e perguntou-lhe o que o havia deixado magoado.

- Não, a culpa é minha. Eu precisei me afastar de você, me desculpe.

Após insistência, Madureira confessou: havia-se apaixonado por ele. João ficou chocado, a revelação pegou-o de surpresa. Sua única reação foi sair, sem dizer palavra, nunca vivera situação semelhante.

Dias depois, João retornou. Descobriu que também se apaixonara pelo policial. Por algum tempo se encontravam às escondidas até que João pudesse analisar melhor o que estava acontecendo com ele.

Mas a sutil mudança de atitude dentro de casa foi o bastante para Rony perceber que havia algo de errado com o pai. Descoberta a relação, denunciou-os à mãe e à irmã num grande escândalo dentro de casa, obrigando o pai a escolher. Pressionado por sua própria consciência, João decidira pela família.

No entanto, uma semana depois, procurou Madureira. Mas ele havia-se mudado para outra cidade, conforme prometido. O médico respirou aliviado, agora seria mais fácil seguir adiante. Entretanto, quinze dias depois, pedira transferência para a mesma cidade de Madureira. Separou-se da esposa num clima tenso, principalmente com Rony, e voltou para o policial.

A relação com a família ainda era conturbada, compreendia isso, não os pressionava para aceitá-lo. E sofria muito. Entretanto o perfeito entrosamento com Madureira estava ajudando-o a atravessar a difícil fase. Apesar de tudo, sentia-se feliz com a nova experiência.

João ainda chorava descontroladamente. Madureira continuava sem saber o que estava acontecendo, suplicava-o, sem respostas. Até que ouviu vozes que vinham de dentro da casa. Não ouvira a porta da sala sendo aberta.

A corretora de imóveis entrou na cozinha com uma cliente:
- E aqui é a cozinha de que te falei, dona Raquel. Não é deslumbrante?
- Maravilhosa! E a gente vai poder mesmo ficar com toda a mobília da casa? A família do médico não reclamou por ela?
- Não. Está tudo documentado, a senhora e seu esposo podem ficar tranquilos. Após a tragédia, ninguém da família quis aparecer.
- Que história triste!
- Nem me fale. Então, vocês não se importam mesmo em morar aqui?
- O que passou, passou. E também o preço está ótimo, não é sempre que uma oportunidade dessas bate à nossa porta.
- Conheci os dois muito pouco, mas eram muito felizes, precisava ver.
- Mas o que aconteceu com o rapaz, o filho do médico que matou o policial?
- Está preso. Mas acho que nem está se importando com isso, coitado. A dor maior foi saber que o pai se suicidou uma semana depois da morte do amante. O médico entrou em depressão profunda, chorava o dia inteiro. Foi encontrado morto sentado nessa cadeira, a arma no chão.

Link http://www.camarabrasileira.com/atm09-005.htm

Um comentário:

Laly Cataguases disse...

Puxa, Ígor, brigadão pelo carinho em publicar meu conto aqui. Fiquei até sem fôlego quando vi! Grande abraço. Laly