quarta-feira, 22 de abril de 2009

Manifesto sobre as Mídias Locativas

André Lemos
Professor Associado da Faculdade de Comunicação da UFBa.
http://andrelemos.info

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Para Bernardo, que já busca o seu lugar no mundo.

Mídia – Todo artefato e processo que permite superar constrangimentos
infocomunicacionais do espaço e do tempo. Mídias produzem
espacialização, ação social sobre um espaço. Mídias produzem lugares.

Locativo – Categoria gramatical que exprime lugar, como “em” ou “ao
lado de”, indicando a localização final ou o momento de uma ação.

Mídia Locativa. Tecnologias e serviços baseados em localização (LBT e
LBS) cujos sistemas infocomunicacionais são atentos e reagem ao
contexto. Ação comunicacional onde informações digitais são
processadas por pessoas, objetos e lugares através de dispositivos
eletrônicos, sensores e redes sem fio. Dimensão atual da cibercultura
constituindo a era do “ciberespaço vazando para o mundo real” (Russel,
1999), a era da “internet das coisas”.

1. Crie situações para perder-se. O medo de perder-se é correlato ao
medo de encontrar. Mas perdendo-se, encontra-se. A desorientação é uma
forma de apropriação do espaço! Tudo localizar, mapear, indexar é uma
morte simbólica: o medo do imponderável, do encontro com o acaso:
evitar uma dimensão vital da existência. “Perder-se é um achar-se
perigoso”, como diz Clarice Lispector.

2. Erros, falhas, esquecimentos de localizações e de movimentações são
as únicas possibilidades de salvação da hiperracionalização atual do
espaço. Só uma apropriação tática dos dispositivos, sensores e redes
poderá produzir novos sentidos dos lugares. Desconfie de sua posição e
de seu status de nômade. Quando sua operadora diz, “você é nômade”,
desconfie. Mas saiba que o nomadismo é um traço essencial da aventura
humana na terra!

3. Tudo é locativo: aprendemos, amamos, socializamos, jogamos,
brigamos, festejamos, trabalhamos..., sempre de forma locativa. Não há
nada fora do tempo ou do ESPAÇO. E o espaço social é o LUGAR. Em tudo,
o lugar é o que importa.

4. Lugar é composto por fluxos de diversas territorializações. Ele é
sempre dinâmico e, ao mesmo tempo, enraizado. Lugar é vínculo social.
Lugar é fluxo de emoções, é topos, é memória e cristalização de
sentimentos. Lugar não é fixação mas interrelação. Com as mídias
locativas, o lugar deve ser visto como fluxo de diversas
territorializações (sociocultural, imaginária, simbólica) + bancos de
dados informacionais. Espaços visíveis marcados por fluxos invisíveis
de informação circulando por redes invisíveis.

5. Hoje é impossível pensar os lugares sem os territórios
informacionais. Mas lugares persistem sem nenhuma informatização. Não
esqueça destes lugares. Pense nos contextos independentes de qualquer
tecnologia.

6. Estamos na era da computação ubíqua e pervasive (Weiser), ou seja
da informática em todos os lugares e em todas as coisas. Mas não há
tecnologias sensíveis e nenhuma delas está atenta a contextos! Elas
estão em tudo e em todos os lugares, mas não sabem o que é um contexto
e nem tem capacidades de sentir o local.

7. Depois do upload para a Matrix lá em cima, a internet 1.0, agora é
a vez do "download do ciberespaço", da informação nas coisas aqui em
baixo, a internet 2.0. Não se trata mais do virtual lá em cima, mas do
que fazer com toda essa informação das coisas e dos lugares aqui de
baixo! Como nos relacionamos com as coisas e com os lugares? E agora,
com essas coisas e lugares dotados de informação digital e conexão à
internet? Convocamos Heidegger e Lefevbre?

8. Recuse os LBS e LBT que te colocam apenas na posição de mais um
consumidor massivo. Busque produzir informação localizada que faça
sentido aqui e agora. Esse é o único meio de construir lugares sociais
com essa tecnologias de localização e mobilidade. Reivindique das
mídias locativas as funções pós-massivas. A publicidade, o marketing e
as operadoras te querem apenas como receptor passivo, massivo, embora
supostamente livre, móvel e sem fronteiras. Eles te querem controlado,
ativo mas consumindo, receptor pensando que está emitindo. Agir é
mais. Reaja à isso.

9. Saiba que as mídias de localização não são novas. Toda mídia é, ao
mesmo tempo, local e global. Preste atenção às mídias locativas
analógicas que estão entre nós, pense nas anotações urbanas como os
graffitis, stickers, bilhetes ou notas, preste atenção às marcas nas
ruas, aos índices a sua volta, ao jornalismo local e agora hiperlocal.
Aja como um detetive buscando solucionar os mistérios do espaço
urbano! Busque o uso crítico dos dispositivos locativos. Lembre-se que
o termo “mídia locativa” foi criado por artistas e ativistas para
questionar a massificação dos LBS e LBT.

10. Use, divulgue e estimule o desenvolvimento de protocolos não-
proprietários, de softwares colaborativos e de fonte aberta, de
sistemas operacionais livres e participativos. A sua liberdade no
mundo das mídias locativas é diretamente proporcional ao
desenvolvimento da computação móvel aberta. Assim como na era do
ciberespaço “lá em cima”, bem como na era da internet pingando nas
coisas, lute contra o fechamento dos dispositivos, dos sistemas, dos
softwares e dos contratos, como os que vigoram no atual sistema de
telefonia móvel mundial. Busque, use e distribua jailbreak para todos
os sistemas da mobilidade e da localização!

11. Pense que o único interesse do uso das mídias locativas é produzir
sentido nos lugares. Se isso não acontece, desligue ou crie um uso que
desconstrua o aparelho. Você não precisa ser preciso, você não precisa
estar localizado o tempo todo, você não precisa ser sempre racional,
um homo-economicus total para viver o local! Se os dispositivos
ajudam, use-o, senão, desvie os usos (hacking) e, se não der mesmo
assim, abandone!

12. Ache um equilíbrio entre o clique generalizado no mundo da
informação e a contemplação ociosa. Desconecte e reconecte os seus
dispositivos, sempre, diariamente, permanentemente. Pare, feche os
olhos, abra os ouvidos e desloque-se apenas pelo pensamento, essa
desterritorialização absoluta (Deleuze).

13. A questão da localização nem sempre está ligada ao espaço e ao
movimento, mas ao tempo. Pense assim na duração, na viscosidade das
coisas, na imobilidade, no tempo estendido. Saiba que nunca há “tempo
perdido” e é impossível “matar o tempo”.

14. Independente de qualquer smartphone ou GPS, o que importa é que
você já sabe onde está: "você está aqui" e "agora". Inverta a máxima
de Walter Benjamin (1927) que afirmava que os “lugares foram reduzidos
a pontos coloridos em um mapa”. Faça com que este pontos sejam
efetivamente lugares.

15. Lute para que marcas, indicando nos mapas o que está perto de
você, não evitem o seu encontro com o inusitado nem com o outro. Não
se preocupe se não souber o que há por perto. Tenha consciência que,
de qualquer forma, você sempre encontrará o caminho para os lugares
que procura. Simples: peça informação, pergunte, procure indícios,
encare o espaço como algo a ser desbravado, localmente, em contato com
o mundo ao seu redor.

16. Pense nos cruzamentos, nas esquinas, nas diferenças de
posicionamento; pense nas conexões, nas distâncias e nas aproximações;
pense no audível e no inaudível, no visível e no invisível, no fixo e
no mutável. Pense nos lugares como parte da sua existência,
permanentemente em construção. Pense que você só é estando
locativamente.

17. Dê sentido ao seu lugar no mundo, social, cultural e
politicamente. As mídias locativas podem, através de anotações, de
mapeamentos, de redes sociais móveis, de mobilizações políticas ou
hedonistas e de jogos de rua, ajudar nesse processo. Mas tudo é
potência e resta ainda o trabalho difícil, penoso, lento, de
atualização.

18. Pense nos bairros, nos cruzamentos, nos caminhos, nos pontos
históricos, nas bordas (Lynch). Sempre se pergunte como as mídias
locativas podem agir em cada uma dessas dimensões: Como criar
comunidade e agir politicamente (bairro)?, como proporcionar encontros
(cruzamentos)?, como abrir novas veredas (caminhos)?, como criar novos
marcos (pontos)?, como tensionar as fronteiras (bordas) com essas
tecnologias?

19. Toda mobilidade pressupõe imobilidade e não existe e não existirá
um mundo sem fronteiras. Fronteira é controle e controle pode ser
liberdade. A imobilidade é uma condição da mobilidade e vice-versa. Só
podemos pensar uma em relação à outra. Devemos mesmo estar imóveis
para pensar a mobilidade e em movimento para pensar a inércia. Defina
as suas fronteiras, tenha autonomia no controle de suas bordas, pare
para se locomover e locomova-se para parar.

20. “Des-locar” não é acabar com o lugar, mas colocá-lo em
perspectiva. Desloque-se e aproprie-se do urbano, escreva seu espaço
com texto, imagens e sons, reúna pessoas, jogue, ocupe o espaço lá
fora. As mídias locativas permitem isso. Mas se não conseguir fazer
nada disso, então pense no uso e no porquê dessas tecnologias.

21. Mapas são sempre psicocartografias, nunca são neutros.
Instrumentos técnicos, mnemônicos e comunicacionais, os mapas,
incluindo aí os “Google Earth”, “Maps”, “Street”, e seus similares,
são sempre expressões de visões tendenciosas do mundo. Eles sempre
refletem estruturas de poder e servem como instrumentos para estender
um domínio geopolítico. Pense na “miopia” dos mapas digitais. Compare
os detalhes de Tóquio e de cidades da África nos mapas digitais para
ter uma idéia dessa invisibilidade.

22. Saiba que todo mapa é uma mídia e que todo mapeamento é uma ação
de comunicação, com mensagem, emissor, canal e receptor. Mapear é
escrever e ler o espaço. Mapear é sempre um discurso sobre o espaço e
o tempo. Mapas, como as mídias, são sempre formas de visualização, de
conhecimento e de produção da realidade do mundo externo. Busque, como
Borges no “Del Rigor de la Ciência”, criar mapas que sejam novos
territórios na escala 1 x 1.

23. Construa mapas que desconstruam visões de mundo. Produza mapas do
que não é mapeado em seu entorno, do que é invisível aos olhos bem
abertos. Escape do cartesianismo, do racionalismo e das coordenadas
geoespaciais. Tente usar as mídias locativas para descentralizar o
poder de construção de mapas e de sentido sobre os lugares. Como diz
Meyrowitz: “toda mídia é um GPS mental";

24. Não abuse das redes sociais móveis: encontrar amigos e conhecidos
ao acaso pode ser mais interessante do que o tudo programado. A
surpresa pode ser um ingrediente para grandes encontros. Mas pense
também nas novas formas de voyeurismo, de controle, de monitoramento e
de vigilância de amigos, familiares, empregados e empregadores.

25. Você é um ponto em roaming nos diversos sistemas (GPS, redes de
telefonia celular, etiquetas RFID, redes Wi-Fi ou bluetooth...). Saiba
que novos tipos de controle, monitoramento e vigilância (sutis,
transparentes e locativos) estão cada dia mais presentes em tudo o que
você faz, desde ligar o celular, acessar uma rede sem fio em um café,
atualizar em mobilidade sua rede social, usar o caixa do banco,
circular com uma etiqueta RFID em sua camisa ou pagar um pedágio
automaticamente ao passar com o seu carro. Pense que não são apenas as
câmeras de vigilância que estão te olhando!

26. Na atual fase da computação ubíqua e da internet das coisas, há os
dados fornecidos, os “data”, mas há também aqueles que não são
“dados”, mas captados à sua revelia e, as vezes, sem o seu
conhecimento, os “capta” (Kapadia, et al.). Pense neles, nos “data”
que você fornece e nos “capta” que te são roubados! Lute para proteger
(agenciar) os novos territórios informacionais de onde emanam os
invisíveis “data” e “capta”. Controle e defenda a sua privacidade e o
seu anonimato, fundamento e garantia das democracias modernas. Crie,
se for preciso, sistemas de contravigilância: sousveillance (Mann)
contra a surveillance. No limite, forneça informações imprecisas ou
desligue e torne-se invisível.

27. Não há apenas o panopticom do confinamento disciplinar de
Foucault, mas o “controlato”, a modulação, a cifra e o “dividual” de
Deleuze. As paredes não vedam mais nada. Os presos atacam da prisão.
Para Pascal, o problema do homem é que ele não consegue ficar sozinho
no seu quarto. Com as camadas informacionais, o que significa e qual a
eficiência informacional de mandar alguém ficar de castigo, sozinho,
no seu quarto?

28. Não há uso, distribuição, produção ou consumo neutro de informação
e ou de tecnologias. Pense em como as mídias locativas podem te ajudar
a criar e destruir seus territórios. Quais os limites dos seus
territórios? Pense em maneiras criativas de contar histórias, de fazer
política, de jogar e de se divertir. Essas tecnologias podem te ajudar
a escrever e demarcar eletronicamente o seu espaço circundante, mas
busque novas significações, novas memórias dos lugares, reforçar os
vínculos sociais e o imaginário coletivo.

29. Comprometa-se em reverter a lógica dos olhares vigilantes, em
produzir sons para ouvidos atentos, em criar imagens do passado
atreladas ao presente. As mídias locativas só têm importância se
ajudarem a produzir conteúdo que faça sentido para você e para o lugar
onde vive. Não use passivamente nenhuma mídia, especialmente essas que
agem sobre a sua mobilidade e localização no mundo!

30. Pense no uso da técnica (ela não é neutra), na comunicação como
aproximação ao lugar e ao outro (ela não é impossível, mas improvável
- Luhmann) e no seu lugar no planeta (ele é parte da sua existência).
A pergunta deve ser: as mídias locativas te ajudam a encontrar o teu
lugar no mundo?

Um comentário:

André Lemos disse...

Ola, obrigado pelo interesse no meu Manifesto, mas não é assim que deve ser feito. O texto foi publicado na revista eletrônica 404nOtFound (http://andrelemos.info/404nOtF0und). A referência ao texto deve ser explicita. O texto não foi feito pra esse blog. Peço que coloquem a referência. Obrigado,
André Lemos