sábado, 22 de novembro de 2008

Black is Beautiful: O domínio do preto no figurino do novo cinema de ação

Fábio Fernandes

Case percebeu que os óculos eram implantados cirurgicamente, selando
as órbitas oculares. As lentes de prata pareciam crescer da pele macia
e pálida por cima das maçãs do rosto, emolduradas pelo cabelo negro
grosso. (...) Ela usava roupa preta justa de couro preto e um blusão
estufado também preto, feito de um material opaco que parecia absorver
a luz.

William Gibson, Neuromancer

1. Good girls vão para o céu, mas as mocinhas bad girls vão a
qualquer lugar

A primeira seqüência de Matrix é emblemática: um perigoso hacker é
cercado pela polícia num edifício arruinado numa grande cidade norte-
americana (que lembra Nova York, mas não é especificada). Tudo se
passa como num filme policial qualquer, até o momento em que os
policiais invadem o apartamento onde uma mulher de cabelos curtos,
penteados para trás com gel, e usando roupa preta, usa um computador.
Ao se ver acuada, ela se defende: e então levamos o primeiro de muitos
sustos ao longo da película: assumindo uma postura de kung fu, a
mulher dá um salto no ar – e permanece no ar, como se as leis da
física não valessem para ela.

Então a pancadaria começa. A mulher faz de tudo: chuta os oponentes em
pleno ar, anda nas paredes, dá saltos entre edifícios. Mata quem
estiver em seu caminho. A mensagem do filme é clara: ela faz isso para
se defender, quando acuada – mas faz. E ela, como em breve
descobrimos, é um dos mocinhos. Trinity, a hacker-dublê-de-lutadores-
de-kung-fu.

O nome Trinity nos oferece uma pista de caráter dúbio porém
interessante: ele pode significar uma referência religiosa à
Santíssima Trindade – Morpheus e Neo (respectivamente o mentor e o
aprendiz nessa história que mistura ficção científica, filosofia e
metáforas espirituais) seriam as outras duas peças da equação – mas
também nos remete aos velhos westerns-spaghetti estrelados por Terence
Hill, como o mocinho de mesmo nome que conseguia proezas incríveis com
seu revólver, como matar dois bandidos com uma bala só. Assim como sua
futura homônima, ele só fazia isso para se defender. A Trinity de
Matrix, portanto, é o que poderíamos chamar de mocinha bad girl.

Ela não está sozinha no mundo de hoje. Trinity é uma das mais recentes
personagens de uma galeria já numerosa e honrosa – que parece ter
começado com a guarda-costas cyborg Molly Millions, de Neuromancer.
Conforme a epígrafe que abre este texto, além dos também emblemáticos
e bizarros óculos espelhados implantados na face, Molly só usa roupa
justa de couro preto. E é igualmente mortal.

Assim como outra figura recente no cinema de ação e ficção norte-
americano, a vampira Selene, da série de dois filmes (até o momento)
Underworld. Linda apesar de ter centenas de anos de idade, sua
aparência física congelada para sempre no instante em que foi
transformada em vampira, Selene habita um underground do século vinte
e um onde duas facções se confrontam sem o conhecimento dos humanos:
vampiros e lobisomens. Que, como em toda boa película de horror,
preferem a noite ao dia para suas atividades, e que vestem – o que
mais poderia ser? – roupas de couro preto. (Overdose que, inclusive,
prejudica a compreensão da primeira seqüência de ação do primeiro
filme, onde ocorre uma batalha no metrô de Nova York entre as duas
facções e por vários minutos ficamos sem entender quem é quem pelo
simples fato de que todos usam rigorosamente o mesmo tipo de roupa.)
Selene não foge à regra nem à moda: veste um conjunto de couro preto
ainda mais justo que o de Trinity. E – é preciso reforçar este ponto –
é tão letal quanto as suas duas companheiras citadas acima.

Todas elas mocinhas bad girls: mulheres que assumem parte do
estereótipo masculino da atitude agressiva sem perder a feminilidade
que os trajes de couro preto parecem realçar, deixando à mostra as
curvas fartas e seduzindo outros personagens (e nós, espectadores-
voyeurs) por um aspecto sadomasoquista-ainda-que-de-

butique que parece
nos convidar a outra atividade, bem mais interessante, depois da
sessão de pancadaria. Uma questão de fetiche.

2. Quando o mocinho vestia branco: no tempo das diligências e até
mesmo antes

Não foi sempre assim. Nem o papel das mocinhas no cinema era tão pró-
ativo nem as cores que simbolizavam a luta pelo lado certo/do bem
(conceito que pode ser às vezes discutível, mas atenhamo-nos por
enquanto a ele mesmo assim). No começo do cinema, outro gênero de ação
fez tanto sucesso quanto a ficção científica e a fantasia fazem hoje,
com estratégias que não eram tão diferentes assim: o western.

Nos seus primórdios, os principais mocinhos do western (ou faroeste,
como ficou conhecido por muitos anos no Brasil) foram William S. Hart,
Buck Jones e Tom Mix. Em filmes hoje esquecidos, como Twisted Trails
(1916) e Wild Bill Hickok (1923), esses caubóis quintessenciais
conquistaram o público dos cinematógrafos nas décadas de 1910 e 1920
mostrando uma visão de mundo bipolar muito bem delineada entre
mocinhos e bandidos – uma visão que, não por acaso, é hoje chamada de
“preto e branco”: afinal, ainda não havia cor no acetato das películas
cinematográficas.

E como fazer para apontar para o público essa divisão de forma
inequívoca? Os primeiros diretores do gênero, como Edwin S. Porter
(The Great Train Robbery, 1903), encontraram uma solução simples porém
de uma enorme eficiência: mocinhos vestem branco, bandidos vestem
preto. Na verdade, os mocinhos não vestiam uma indumentária
completamente branca, mas os tons das roupas eram claros, para criar
um contraponto ao preto (este sim, quase completo) do vestuário dos
bandidos. A escolha das cores também era clara: no ocidente, o branco
representa a paz; por extensão, quem veste branco é aquele que deseja
a paz.

Já o preto significa morte, luto: aqueles que o vestem são portadores
de sofrimento – seja o próprio ou o infligido a outros. Estava
definido um sistema de significação que ficaria no imaginário dos
espectadores até bem pouco tempo: quem não lembra do bom-moço Luke
Skywalker em seu quimono branco (ou off-white, melhor dizendo) contra
a escuridão absoluta do traje de Darth Vader na trilogia Guerra nas
Estrelas?

E onde apareciam as mocinhas nesse esquema? Ou não apareciam ou (no
caso dos westerns) eram as jovens sulistas virginais que ficavam
sempre à distância, em seus vestidos claros e cheios de laços e
rendas, com corpete e crinolina, misturando feminilidade e decência:
afinal, as histórias se passavam no século dezenove e os filmes eram
rodados nas primeiras décadas do século vinte.

3. O fetiche do couro preto: a dor e a delícia de se ser o que é no
cinema do século XXI

Até Karl Lagerfeld se rendeu ao fascínio do couro preto em 1995, ao
renovar o terninho Chanel numa versão de couro preto. Depois da New
Wave dos anos 1980 e do excesso de cores cítricas e glitter gel, o
momento do pretinho básico havia voltado. Os anos 1990 foram generosos
para com o preto na moda; o cinema não ficou atrás.

Mas, desta vez, a história era outra. Entre os primeiros filmes a
explorar a dicotomia preto/branco e os anos 1990, muita coisa
aconteceu. Duas guerras mundiais, a revolução da contracultura (com a
pílula anticoncepcional e o LSD-25 a reboque), o feminismo
(importantíssimo para o escopo de nosso estudo) e guerras territoriais
(Israel x Palestina) e étnicas (Bósnia) que devastaram sociedades
inteiras. O conceito de bandeira branca perdeu sua força num mundo que
começou a se redefinir por tons de cinza – e preto, claro.

Um dos ícones underground da contracultura foi o trabalho de Tom of
Finland. No auge da contracultura, o finlandês Touko Laaksonen criou
as mais ousadas obras de arte erótica do período, retratando homens
belos e musculosos satisfazendo seus mais profundos desejos –
praticamente todos envolvendo roupas de couro preto.

Mas, nos anos 1990, o couro preto não era mais privilégio de
motoqueiros que por acaso ainda procurassem imitar um estilo Marlon
Brando (ou Keke, o policial erótico de grande parte dos desenhos de
Tom of Finland). A mulher pós-moderna está muito distante das colagens
irônicas pop de Eduardo Paolozzi e de Richard Hamilton, que retratavam
– ainda que ironicamente – mulheres com avental de cozinha e fazendo
alegremente trabalhos domésticos. A mulher pós-moderna, para usarmos
uma expressão em inglês muito em voga atualmente, kicks ass, ou seja,
sai no braço. E a pancadaria é na cara e na coragem. Ou poderíamos
dizer, na roupa e na coragem? Porque as mocinhas-bad-girls não raro
utilizam apenas os punhos e as pernas, diferente do recurso (fálico)
do revólver dos mocinhos de western. Se o hábito faz o monge, podemos
dizer que a roupa de couro faz a mulher de ação no cinema.

A roupa, no caso de Trinity e Selene, é uma armadura. Mas não uma
armadura como couraça no sentido reichiano; poderíamos, antes, pensar
nessas sedutoras armaduras como uma ressignificação do órgão sexual,
de acordo com os Três Ensaios sobre Sexualidade, de Freud: a pele se
transformou em mucosa nos corpos pós-humanos de Trinity e Selene (a
primeira porque virtualizada e a segunda porque vampira, ambas
portanto além de qualquer estatuto humano como o concebemos hoje).

Não importa que, na vida dita real, a roupa de couro seja mais
estética do que prática, e eventualmente possa até mesmo atrapalhar os
movimentos. Um ótimo exemplo (ainda que cômico) é o episódio da sitcom
norte-americana Friends em que Ross Geller veste uma calça de couro
para seduzir uma namorada e, ao precisar tirá-la no banheiro,
simplesmente não consegue colocá-la de novo no corpo, de tão justa que
ela é. Uma comicidade mais próxima do campo do real que as aventuras
fetiche-pancadaria das mocinhas do cinema de hoje. Não deixa de ser
engraçado perceber que no episódio de Friends, quem se dá mal é o
macho: sinal dos tempos...

4. Consideração final: tudo muda o tempo todo no mundo

Ironicamente, a epítome da mulher pós-moderna que é mocinha-bad-girl
(e que não foi citada de propósito até agora) é A Noiva, personagem de
Uma Thurman em Kill Bill. Em nenhum dos dois volumes do quarto filme
de Quentin Tarantino ela se veste de preto – exceção honrosa que pode
ser atribuída a um outro fetiche de Tarantino, desta vez envolvendo os
uniformes de artes marciais e, geral e, em particular, os filmes de
Bruce Lee. Neste caso, o código de cores e do vestir é inteiramente
outro. Mas a mocinha-bad-girl, claro, permanece.

Resumo do filme? A moda pode ser efêmera, e no cinema talvez até hiper-
efêmera, como poderia dizer Lipovetsky. Mas o buraco negro conceitual
para dentro do qual fomos todos sugados nunca foi tão verdadeiro, e já
está durando bastante tempo. Vai desaparecer, para dar lugar a uma
nova tendência?

Certamente que sim – como tudo no mundo. Mas é importante perceber o
preto-armadura-de-batalha no catwalk de celulóide como um registro do
zeitgeist. Ou, por que não aproveitarmos o trocadilho, do poltergeist,
já que a violência é um fantasma que sempre nos assombra, dentro e
fora da moda?

BIBLIOGRAFIA

BAUDOT, François. Chanel. New York: Assouline Publishing, 2003.

FISCHER-MIRKIN, Toby. O Código do Vestir. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

FREUD, Sigmund. Três Ensaios Sobre Sexualidade. In: Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol.
VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

GIBSON, William. Neuromancer. São Paulo: Editora Aleph, 2003.

HOOVEN, I. Valentine. Tom of Finland. London: St. Martins Press, 1994.

MATTOS, A.C. Gomes. Publique-se a Lenda – A História do Western. Rio
de Janeiro: Rocco, 2004

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