segunda-feira, 31 de março de 2008

Entrevista: ARTO LINDSAY

por Hermano Vianna
texto integral da entrevista publicada na revista Qualis, número 12, 1993

H - Em 1985, na época do lancamento do primeiro disco dos Ambitious Lovers, Envy, você disse
para o jornal inglês New Musical Express que "existe algo errado quando o QI de sua platéia excede em muito o QI médio da cidade onde você está tocando". Hoje, oito anos depois, como você avalia o QI de seu público?

A - Eu acho que - infelizmente - o QI do meu público é mais alto ainda. (Risos) Mas como ando
produzindo discos de gente famosa, eu fico famoso por ser amigo das pessoas famosas. Isso de um
lado é ridículo, mas de outro é bacana porque eu reconheco que um dos meus fortes é a
colaboração. A criação individual é uma ideia muito poderosa e todo o sistema do mercado é
voltado para o indivíduo. Mas a criação em grupo traz muitas novidades, é necessária, o mundo
precisa dela.

H - Os Ambitious Lovers sinalizavam para uma mudança em sua carreira, da arte "de confronto" da
época da banda DNA, cuja música foi rotulada como "noise" ou barulho, para uma atitude mais pop.
Por que você quis fazer isso? E por que você ainda nao é um ídolo de massas?

A - Eu quis mexer com a massa. Sempre gostei de música pop. Mas não sei se tive bastante vontade
de ser um ídolo de massa. Queria trazer o confronto pra dentro desse meio. Você pode ver que eu
acabei fazendo uma coisa bem pop. Uma geração nova acabou fazendo algo parecido com a minha
musica antiga, do DNA, transformada em pop. Mas a semelhanca só vai até certo ponto. O Nirvana,
por exemplo, é um Beatles vestido de zoeira. O que a gente fazia era bem mais sofisticado do que
isso. A técnica era mais primitiva mas a ambição artística era muito maior.

H - Mas existia a possibilidade de voce fazer o que o Sonic Youth fez, de domesticar o noise,
transformando-o em algo mais pop. Porque você optou por outro caminho?

A - Eu fiz aquilo e passei para outra coisa. Eu preferi, em vez de domesticar aquela coisa crua,
deixar tudo como estava. Fica em disco, fica como influência.

H - Mas a sua escolha tinha a ver com o Brasil. Com uma tradição da música brasileira que privilegia
harmonias sofisticadas...

A - É verdade. Quando acabei o DNA, peguei os discos do Noel Rosa, Cartola, e fiquei cantando
aquilo sozinho em casa. Foi assim que comecei a cantar melodias. É uma coisa engraçada. A
ambição das pessoas que amam sua arte não é ser O Artista, como parece de fora. Na verdade você
quer ser um dos artistas, você quer participar de alguma coisa. No caso da música noise, tão
importante quanto o punk foi a “performance art” primitiva, Vito Accunci, Chris Burden, coisas bem
extremas. Também estavamos descobrindo, cada um por si, Dada, Artaud, William Burroughs, que
eram coisas que você tinha que ir atrás, nao se aprendia no colégio. Eu nunca tinha ouvido nada
parecido com o que eu faço, mas sabia que aquilo tinha que existir, alguma coisa como uma guitarra
free jazz.

H - Mas como é que um garoto como você, criado em Garanhuns, no interior de Pernambuco,
conseguiu se enturmar com que existia de mais extremo ou "de confronto" na arte de Nova York?

A - A formaçã0o brasileira me deu várias coisas. Eu sabia que a cultura era uma coisa mutável.
Aprendi que os hábitos e as maneiras das pessoas são coisas arbitrárias. Desde menino eu sempre
vivi em mundos diferentes, isso me deu muita liberdade mental. Eu me sentia tão em casa aqui como
lá. Eu não me sinto estrangeiro em lugar nenhum e me sinto estrangeiro em todos os lugares. Mas
não é uma coisa romântica. Sempre foi assim.

H - Eu li recentemente algumas declarações de escritores com Carlos Fuentes e Mário Vargas Llosa
falando que essa situação da America Latina, de estar entre varias culturas e de ser mestiça, é o
futuro do mundo. Você acha que o seu modo de vida é também o futuro?
A - Claro que eu acho (risos). Sei que alguns amigos vão ficar horrorizados ao ler isso.
H - O mundo vai ser melhor assim?
A - Bem melhor. Não sei, a questão é interessante, mas agora a gente só pode ser superficial ao
tratar dela. Eu acho que o mundo caminha para essa mestiçagem, com certeza. A gente não entende ainda que formas isso vai tomar. E tem o outro lado: se você olha para a história, aquilo que você vê
como original também é produto da mestiçagem. Por exemplo, olhando para cultura japonesa parece
que aquilo é uma coisa sólida, um objeto. Mas o Japão misturou influências coreanas, chinesas. Nada
é original. Quando ficar todo mundo se comunicando, esse processo só vai se acelerar.
H - Nessa situacao existe a possibilidade de escolher entre dois caminhos. Você já falou que esses
são dois métodos usados em suas composições: um seria a fusão, o mestiço, o outro seria a colagem, colocar coisas diferentes uma do lado da outra. Qual é o metodo mais interessante?
A - Hoje em dia eu acho a colagem mais interessante. Uma palavra melhor é justaposição. A
justaposição é mais interessante que a superposição. Talvez por ser o caminho menos explorado. É
mais difícil. O John Zorn tenta fazer essa coisa, mas fica ainda sem sentido. Ele se justifica, como eu
me justifico, falando do espaco entre um elemento e outro como sendo o que é interessante. O nãoexpresso, o não-explicitado é o que vale. Quando eu coloco dois termos juntos eu não vejo um
terceiro termo que seja a síntese, mas eu vejo uma multiplicidade de possíveis relações. Amigos,
inimigos, masculino, feminino, um é resultado do outro, todas as possíveis relações entre os
elementos. Conseguir direcionar um pouquinho isso, é o que realmente me excita.
H - O que é que voce acha que artistas como Caetano e Gal esperam de você ao lhe chamar para
produzir um disco?
A - Eu não sei. Eu já achei várias coisas. Acho que eu sou um bom produtor. Eu sei dar ao artista
aquilo que ele precisa para fazer melhor aquilo que pode fazer. Eu sei estruturar a situação para ele.
Eu sei lhe dar as ferramentas. Eu tenho também uma visão de fora do seu trabalho. Talvez seja isso,
não tenho idéia.
H - Mas a personalidade do produtor não deve interferir no trabalho?
A - Tem que interferir. Por exemplo: a pessoa quer fazer alguma coisa; se você se opor a ela, ela tem que ter certeza que quer aquilo, tem que procurar as razões. Mas é claro que também quero algumas
coisas e não posso deixar de querer. Isso faz parte. No dia a dia do trabalho, eu não posso deixar de
ser uma pessoa com desejos e opiniões. Tenho muitos. Mas também eu quero que a pessoa me
surpreenda, eu quero que ela me faça gostar ainda mais da sua música.
H - Ao lado do trabalho de produtor, você tem desenvolvido uma relação cada vez mais intensa com
o teatro, participando de peças de Heiner Muller na Alemanha ou fazendo a trilha do novo
espetáculo de Gerald Thomas no Brasil. Como isso começou?

A - Eu vi pouquíssimo teatro na minha vida. Mas antes de montar o DNA eu me interessei muito
pelo teatro do Richard Foreman em Nova York. Na faculdade, onde eu aprendi mais foi participando
de um grupo de teatro, que fazia coisas bem abstratas, como uma peça sem nenhum gesto humano.
Minha música acabou ficando bem teatral.

H - Você também compõe para trilhas sonoras para grupos de dança. O último trabalho foi para
Amanda Miller, coreógrafa do Balé de Frankfurt. Como surgiu a idéia dessa colaboração?

A - O trabalho foi encomendado pelo balé Gulbenkian, que é português, e a Amanda me sugeriu
fazer uma trilha com muito texto baseada em Fernando Pessoa. Eu gravei a música usando
basicamente três baterias. Foi muito legal. Os bateristas nunca tocam juntos. Os caras deliraram no
estúdio tocando uns com os outros. Eu dei idéias e regi. Deixei eles tocarem e depois editei o que foi
gravado.

H - Você sempre teve muitos amigos artistas plásticos, como Jean Michel Basquiat e Julian
Schnabel. Você vê alguma possibilidade de uma colaboração entre música e artes plásticas?
A - Claro. Eu vou fazer agora um trabalho com Richard Prince, que depois daquelas apropriações de
fotografias de publicidade tem feito quadros com piadas escritas. Ele quer fazer um disco de piadas,
e eu vou fazer a parte musical.
H - Todos esses seus interesses ecléticos estavam representados na seleção que você fez para o
Festival de Munique do ano passado. Qual era mesmo a sua escalação?
A - O pessoal de Munique convidou alguns compositores para fazer a programacao de cada dia:
Philip Glass, John Zorn, Ornette Coleman, John Cale and myself. Eu levei Roland Topor, que é um
cineasta e cartunista francês. Chamei um grupo da Sérvia, só de sopros. O Vito Accunci mandou
uma fita e slides. Convidei Babes in Toyland, que é uma banda neo-punk, três meninas, genial, tudo
o que eu gosto. Convidei Amanda Miller que dançou entre Babes in Toyland e minha banda, com
Marisa Monte como convidada especial. E no final da noite ainda tinha os DJs e os travestis do
Jackie Sixty, meu clube noturno preferido de Nova York.
H - Pra terminar: qual é a principal diferença entre os Estados Unidos e o Brasil?
A - Lá, água de coco é enlatada.
H - E a semelhança?
A - A cultura dos dois países é a mistura do africano com o europeu. Todo mundo está começando a
valorizar isso agora. Eu detesto quando as pessoas dizem que aqui no Brasil nada funciona. Sempre
achando que lá é melhor. A gente precisa ver as possibilidades únicas daqui. Sempre dei a maior
força para fazer com que os americanos vejam que o Brasil é um pais moderno, que faz parte do
mundo atual. Eu luto lá fora contra a visão exótica do Brasil. Sempre falo de Hélio Oiticica, Nelson
Rodrigues e Caetano Veloso como sendo grandes artistas, comparáveis a qualquer um no mundo
inteiro, que deveriam fazer parte do diálogo internacional, que têm coisas inovadoras, importantes
para oferecer para todo mundo.

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