terça-feira, 18 de março de 2008

Butão Tecnológico

Menos de uma década depois de terem chegado ao Butão, país considerado a Shangri-la dos Himalaias, TV, internet e celular estão transformando os habitantes do lugar, que por séculos foram acostumados a agir de maneira coletiva e espiritual, em famintos consumidores.

A história é inverossímil, lembra as chamadas da Sessão da Tarde, cheias de exageros: "Tudo vai bem naquele sossegado reino nas montanhas.

Até que o rei resolve modernizar tudo e... arranja uma tremenda confusão!". Mas é isso mesmo que está acontecendo no Butão, o tal reino nas montanhas - por sinal, algumas das mais altas do mundo, nas entranhas do Himalaia. Pensando bem, a experiência butanesa é ainda mais supreendente do que a ficção dos filmes vespertinos. Até 1999, oito aninhos atrás, televisão, internet, celular, entre outros símbolos augustos da tecnologia, eram proibidos no país, a última nação na Terra a apresentar aparelhos de TV a seus habitantes. Francamente, é ou não é difícil de acreditar?

Alguém certa vez escreveu que a ficção precisa fazer sentido, caso contrário não convence; já a vida, não precisa fazer sentido: a vida é. Ainda assim, no caso desse longínquo país asiático, há antecedentes que ajudam a entender como as coisas chegaram aonde chegaram. Ora, até meados dos anos 60, o Butão não tinha sequer moeda corrente. As pessoas produziam o que precisavam e obtinham o faltante por meio de escambo com os vizinhos, assim como faziam nossos mais remotos antepassados. Não havia estradas. A conexão com a Índia, histórica parceira comercial, era feita sobre mulas, em viagens que chegavam a durar dias e dias. Quando o primeiro jipe apareceu em Thimpu, a então muito rústica capital, teve quem corresse achando que era um dragão a cuspir fogo! Outros, destemidos, chegaram perto trazendo feno para a criatura. Custa crer que, quarenta anos atrás, o sossegado reino nas montanhas nem ao menos centros urbanos possuía, pois a vida se desenrolava pura e bem resolvida em vilinhas bucólicas, distantes entre si e, mais ainda, do restante do mundo.

HORIZONTE PERDIDO?

E foi nesse reino improvável, misto de Horizonte Perdido com Jurassic Park, que um dia o rei resolveu modernizar tudo e rasgou a tábua de proibições, para alegria da população, para aflição dos monges budistas, personagens importantes em toda essa história. Porque, se ainda não caiu a ficha, o Butão é o país da Felicidade Nacional Bruta, um índice que arrepia aquele outro, mais consagrado, do Produto Interno Bruto (PIB).


Conforme as idéias do rei Jigme Singye Wangchuk - hoje multiplicadas internacionalmente por lideranças, empresas e instituições preocupadas com os rumos que a civilização vem tomando -, é através da felicidade de cada um que se mede a verdadeira riqueza de uma nação. Ou seja, é em meio a uma cultura tradicionalíssima, milenar, fortemente sustentada pela devoção a Buda e à simplicidade, que a TV , o celular e a internet chegam para... claro, arranjar uma tremenda confusão.

Junto com o projeto de modernização, o governo lançou também seu canal de TV , a Bhutan Broadcasting Service (BBS), com uma programação simples, pautada em conteúdo educativo e espiritual, notas sobre o índice de Felicidade Nacional Bruta e algumas novelas românticas produzidas na Índia. O problema é que, além da TV estatal, os butaneses passaram a ter acesso a mais de 45 canais internacionais, entre eles BBC, National Geographic, Cartoon Network, AXN, HBO, Sony, Fashion TV , MTV ... Quer dizer, mesmo num país diferente, onde valores morais e religiosos são comumente colocados acima dos interesses mundanos, fica difícil competir com uma carga tão novidadeira e excitante. Então o canal estatal segue lá com seus devotos, mas a TV comercial é a grande sensação.

Uma pesquisa do Ministério da Informação feita em 2003 revelou alguns aspectos dessa reviravolta nos hábitos da sociedade butanesa - algo que evidentemente continua em curso. Tem mulher reclamando que o marido não sai da frente da TV , que não dá mais aquela atenção de antigamente. Tem professor dizendo que os alunos andam dormindo tarde, que não se concentram nas aulas desde que o Ten Sports, um canal esportivo europeu, passou a disseminar no país uma modalidade de luta baseada em força e agressividade, o wrestling americano. "A televisão tem levado a menos interação entre as famílias", afirma à Send Benjamin Crow, representante do Banco Mundial para assuntos do Sul da Ásia. É mesmo de imaginar o impacto que a descoberta de um mundo vasto mundo causou e vem causando nos butaneses, que há tão pouco tempo viviam acostumados a paisagens bíblicas e uma rotina pra lá de espartana. De uma hora para outra, surge um aluvião de propagandas coloridas e piscantes apelando aos sentidos,

desafiando a alma: Compre! Compre! Compre! "A proliferação dos salgadinhos e similares resultou em uma quantidade absurda de lixo", diz o especialista. E os sinais da globalização não estão apenas na junk food. Fora do horário de trabalho, muitos jovens já se vestem como Di Caprios e Britneys, alheios aos códigos locais. Bem, alguém também já escreveu que a felicidade é uma coisa à toa.

CAVALO DE TRÓIA

Essa revolução não é de agora ou de oito anos atrás, e quem a iniciou foi o antecessor do rei Jigme Singye Wangchuk - o pai dele. A dinastia, iniciada em 1907, chama atenção pela inteligência e visão estratégica. Hoje, o Butão é uma monarquia constitucional, tem um parlamento e um código legal (baseado em preceitos budistas), um modelo bem diferente do anterior, autocrático, bastante típico dos reinos asiáticos na primeira metade do século 20. Foi o pai do rei quem promoveu a abertura de estradas, a criação de uma moeda e de um banco central, entre outras medidas modernizadoras que deslancharam por lá a partir dos anos 60. O então patriarca dos Wangchuk causou furor por ter mexido também na estrutura sacrossanta das escolas, introduzindo o modelo ocidental de educação em uma sociedade servida unicamente por instituições monásticas, nas quais se aprendia que a iluminação interior era mais importante do que o conforto material. Bem, dizendo de um jeito bem brasileiro, o atual rei pegou o bonde andando e veio dando tratos à bola.

Agora, com apoio da Índia e investimentos das Nações Unidas e do Banco Mundial, Jigme Singye Wangchuk vem fazendo o que para muitos era inevitável: tirar o país do período medieval e colocá-lo no século 21. "As mudanças estão acontecendo rapidamente, levando o Butão a uma governança democrática que culminará com eleições gerais em 2008", diz Benjamin Crow. Lyonpo Leki Dorji, ministro de Tecnologia e Telecomunicações do Butão, já declarou o mesmo entusiasmo: "Nossa população está espalhada pelo país, em meio a uma topografia muito montanhosa. A internet, por exemplo, pode resolver uma série de problemas. Ela pode resolver o problema da distância, pode incrementar a produtividade, pode ajudar as pessoas a ganharem tempo, a terem acesso a entretenimento e material educacional. A internet, enfim, pode nos ajudar a tomar parte na sociedade global."

O Butão tem apenas um provedor de acesso estatal, o Druknet, e a conexão pode ser discada ou banda larga, via satélite. Como era de se esperar, os indicadores do desenvolvimento econômico e tecnológico mostram uma curva superascendente, pois a largada foi praticamente do zero. Com 790 mil habitantes, o país tem hoje cerca de 41 mil linhas telefônicas fixas (51 para cada mil indivíduos), 47 mil assinantes de celular (59 entre cada mil) e 31 mil usuários de internet (39 entre cada mil). Comparar é sempre bom: no Brasil, em contas grosseiras, são 26 milhões de linhas telefônicas fixas (140 para cada mil indivíduos), 100 milhões de assinantes de celular (495 entre cada mil) e 33 milhões de usuários de internet (170 entre cada mil).

No Butão, há 58% de lares com televisão, enquanto no longínquo Brasil, vizinho do primeiro apenas na ordem alfabética, são 90%. À sombra desses números, o já não tão sossegado reino asiático vem pondo à prova seu temor atávico - o de que a expansão tecnológica acabe ocidentalizando sua cultura e sua sociedade, assim como já ocorreu em países vizinhos. Eles sabem muito bem que a TV , a internet e o celular proporcionam conhecimentos, recursos e prosperidade para atender a todo tipo de indicadores, inclusive o da Felicidade Nacional Bruta. Mas não ignoram que, em seu arcabouço, podem trazer elementos capazes de deteriorar a aura de pureza que ainda resiste no reino. Cavalo de Tróia? "Na internet existem coisas boas e coisas ruins", afirmou à BBC Gembo Dorji, oficial de planejamento do Corpo Monástico, uma instituição ao mesmo tempo espiritual e política, cujos integrantes têm voz forte na Assembléia Nacional e no Conselho Real. "Nossos jovens podem ir para o lado ruim e se perderem por conta disso." O ministro de Tecnologia e Telecomunicações, Leki Dorji, é um homem sincero, não esconde seus conflitos: "Será que a televisão faz você mais feliz ou menos feliz? Bem, ela aumenta suas expectativas, provavelmente fazendo você mais infeliz".

Se esses butaneses ilustres sentassem para conversar com o norte-americano John Naisbitt, autor de Megatrends e High Tech, High Touch, certamente esqueceriam das horas. Esse ex-executivo da IBM e da Eastman Kodak trabalhou junto a grandes estadistas, como John F. Kennedy e Lyndon Johnson, do qual foi assessor especial, e por isso, ou apesar disso, adquiriu uma percepção infelizmente rara do que é a tecnologia e para que ela serve. Segundo ele, "a tecnologia incorpora suas conseqüências, tanto boas quanto más. Ela não é neutra". Em seus estudos, Naisbitt identificou os sintomas de um mal que acomete a sociedade ocidental - essa cujos modos e maneiras, para o bem e para o mal, são exportados em nome da modernização. Diz ele que vivemos em uma "zona tecnologicamente intoxicada" porque
1) favorecemos as soluções fáceis, da religião à alimentação, 2) tememos e cultuamos a tecnologia, 3) confundimos a diferença entre o real e o falsificado, 4) aceitamos a violência como normal, 5) gostamos da tecnologia como brinquedo, 6) vivemos nossa vida distanciados e distraídos.

EQUILÍBRIO POSSÍVEL

Para esse e outros observadores despertos, o Butão vem servindo como tubo de ensaio, um laboratório vivo que permite testar uma certa quantidade de teorias a respeito da complexa relação homemtecnologia - drama que pode ter começado quando da descoberta da roda. De um lado, é óbvio que a TV , a internet e as outras estrelas da ICT (sigla em inglês para Information and Telecommunications Technology) não podem, sozinhas, garantir água, comida, habitação, saúde ou educação, mas sem dúvida são ferramentas maravilhosas para consegui-las. "Se for propriamente dirigida e compreendida, a ICT pode contribuir com os serviços que melhoram a condição humana e permitir um alto índice de atividades a um custo bastante baixo", afirma Benjamin Crow, do Banco Mundial. "Nosso entendimento aqui na instituição é que os países em desenvolvimento que adiarem essas medidas acabarão pagando um preço altíssimo mais tarde."

Todavia, parte dos sintomas da intoxicação citados por John Naisbitt já pontua a jornada tecnológica butanesa. Os estudantes dispersos na sala de aula, a moda violenta do wrestling, as roupas fake-chic copiadas dos ídolos americanos e europeus - está tudo ali... e eles estão adorando! A pesquisa do Ministério da Informação mostra que 66% da população acha que a TV abriu sua mente, trazendo um impacto positivo na sociedade. O governo está em cima. O tal canal que transmitia lutas foi banido depois que os professores deram o alarme, embora os aficionados tenham passado a acessar programas do tipo em outros canais.

A MTV e a Fashion TV também sofreram sanções por conta de sua "má influência". Na internet, o hype são os bate-papos - em um país tão montanhoso, comunicar-se direto com amigos e familiares virou, por assim dizer, um grande barato. Discutir grandes temas com desconhecidos também, e o fórum on-line dos leitoresdo Bhutan Kuensel, o jornal mais importante do país, é parada obrigatória para os "butanautas", com recorde nacional de 60 mil hits por dia. De resto, liberdade total e diversa de navegação, que, conforme os números do Ministério da Informação, é usada principalmente em troca de e-mails (37,89% dos usuários), sites de notícias e informações (26,32%) e chats (20%). Apenas 6,32% dizem usar a web no trabalho e meros 4,21% recorrem a ela para fazer pesquisas e adquirir novos conhecimentos.

A esperança para o Butão é que as coisas se encaixem naturalmente e em equilíbrio, conforme os princípios budistas. "Temos visto a música tradicional

butanesa sendo corrompida pelos programas da MTV , ritmos diferentes e assim por diante", disse numa entrevista à BBC Lyonpo Jigmi Thinley, ex-ministro butanês para Assuntos Internacionais, hoje ministro de Habitação e Assuntos Culturais. "O paradoxo é que agora há por aí um grupo de tradicionalistas tornando-se consciente desse tipo de influência, e que está dando passos firmes para, novamente, popularizar a música tradicional e tudo que é autenticamente nosso. Ou seja, vem uns e tiram o lugar dos que estavam consagrados, enraizados, tornando-os conscientes dessa situação e, assim, dando-lhes força para reagir e evitar que mudanças aconteçam. Tudo é uma questão de quem prevalece a cada momento do jogo, e parece ser isso que querem os butaneses. No fim, é o povo quem vai escolher o caminho."

Um episódio na capital Thimpu ilustra bem as teorias do ministro e até lhes atribui certa sabedoria. Durante anos e anos, um guarda de trânsito, desses que mais ou menos são parecidos no mundo todo, com chapéu e luvas brancas, cumpria sua visível rotina a bordo de uma guarita elevada junto ao principal cruzamento da cidade. Passam tão poucos veículos ali, e seria de perguntar se o trabalho do homem é mesmo imprescindível. Mas, para as autoridades locais e também para a comunidade, o lugar exigia até mais: um semáforo! Afinal o país já tinha os pés na modernidade. E assim foi feito. Passados alguns dias, voltaram atrás: a sensação geral foi que o cruzamento havia perdido algo caro e essencial: a presença humana. Parece ingênuo e encantador, amoroso demais, final perfeito para uma Sessão da Tarde. Mas, parando pra pensar, pode estar aí a chave de entendimento para o desafio tecnológico do Butão. E de todo o mundo, claro.

http://www.revistasend.com.br/ (de olho na interface)

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