A Música Paralela - Hermano Vianna
publicado no caderno Mais!, Folha de S. Paulo, 12/10/2003, páginas 10 e 11
Há muito tempo, o estilo de consumo musical das periferias brasileiras vem se comportando de
maneira totalmente diferente do padrão que as gravadoras aprenderam a controlar, e do qual sabem
tirar seus lucros. Nos anos 80, eu já ficava impressionado com o fato de que nos bailes do funk
carioca ninguém conseguia transformar o sucesso da pista de dança numa carreira artística estável,
como a que fundamenta outros mercados do pop.
Tudo ali era e continua sendo efêmero. A massa de dançarinos mal sabe o nome de quem canta; a
maioria dos compositores - centenas e centenas deles - só faz um ou dois sucessos e desaparece; os
sucessos quase nunca são lançados em disco e quando o são, pouca gente compra.
Funk é para se escutar no baile e no rádio, não para se transformar numa coleção de CDs. Com esse
tipo de música os fãs estabelecem uma relação bem distinta daquela que freqüentemente se tem com
o jazz, ou o heavy metal, por exemplo, onde há até competição pela posse das informações mais
esotéricas sobre seus ídolos. Não é uma questão de qualidade (diria um crítico: "funk não presta
nem para isso"), é uma relação pré-indústria cultural, mais próxima do "folclore" do que da
mercadoria rara e entesourável (que a indústria cultural, contra todas as aparências, continua
produzindo o tempo todo). O "folclore" pertence a todos, está sempre próximo, e por isso não
precisa ser tratado como algo especial ou genial ou caro (e como todo CD oficial é caro!).
Mais recentemente percebi que as crianças de hoje têm uma relação com a música em geral bem
parecida com essa postura "descartável" que identifiquei no funk carioca. Elas pedem "toca a
música 5 deste CD" quase sempre sem ter a menor idéia do nome da faixa ou de quem está tocando.
Os adolescentes também trocam MP3s pela internet, ou CDs produzidos nos seus computadores,
sem informação nenhuma sobre nomes de bandas ou de canções. E é tanta música - grande parte
gravada em estúdios caseiros e circulando por tantas mídias - que alguém que passou a gostar de
música agora não vai ter tempo nem disponibilidade para fazer pesquisa no Google procurando
mais informações sobre aquilo que mais gostou, até porque vão aparecer logo milhares de outros
sons novos que atrairão sua curiosidade cada vez mais promíscua.
Num panorama como esse, é óbvio que um camelô de CDs piratas tem muito mais chances - não só
pelo preço - de seduzir o público do que uma loja de discos oficiais, onde os produtos são vendidos
quase sempre com a aura de obras de arte (mesmo há tanto tempo na época de sua reprodutibilidade
técnica!), adequadas a um tipo de consumo sempre refinável e intensamente retro-alimentável. Se o
garoto quer comprar uma música ("aquela que fala assim 'não sou audiência pra televisão'... não sei
quem canta...") para escutar umas três vezes - se muito - para quê precisa de capa luxuosa, som
perfeito ou letra completa (com relação completa dos músicos que tocaram em cada faixa) no
encarte?
Os piratas são os inimigos "número 1" da indústria fonográfica. Mas nem toda a música do mundo
está sendo lançada pela indústria fonográfica. Portanto, imaginava eu, deveria existir em algum
lugar do mundo alguma música que seria amiga da pirataria. Só não tinha encontrado ainda um
exemplo concreto dessa relação "amigável".
Até que fui para Belém de Pará e me apaixonei pelo tecnobrega. Procurei os discos nas lojas de
discos, pois sou do tempo antigo em que todo mundo comprava discos em lojas de discos. Nada. Os
músicos mesmo me indicaram os camelódromos como os únicos locais onde poderia encontrar os
seus sucessos. Não tive dúvidas e, confesso criminosamente, comprei os meus primeiros discos
piratas feliz da vida.
O tecnobrega é a nova evolução de um dos estilos mais populares que a música popular brasileira já
produziu. Sua origem mais remota, se não quisermos ir mais longe entre antepassados seculares da
tradição romântica nacional, é a jovem-guarda dos anos 60, rock básico e escandalosamente
ingênuo, tocado com uma guitarra "chacumdum", um baixo e bateria. Quando Roberto Carlos quis
virar cantor adulto, acompanhado por orquestras, a jovem-guarda migrou para o interior, mas
manteve público fiel entre as camadas mais pobres de nossa população, passando a ser chamada
pejorativamente de brega.
O brega floresceu primeiro no Goiás de Amado Batista, depois foi passear no Pernambuco de
Reginaldo Rossi e acabou montando seu mais recente quartel-general no Pará. Na Belém pós-
lambada, todo ano, são lançados mais de 2.000 discos diferentes de brega, em muitas gravadoras
independentes.
Essa música toca nas rádios locais e nas festas de aparelhagem, que são os grandes bailes da
periferia paraense, com equipamento gigantesco formado por centenas de amplificadores,
televisores, teclados, samplers, tudo empilhado em formato de totem tribal eletrônico. Os DJs das
aparelhagens - equipes de som que levam nomes como Príncipe Negro ou Tupinambá Treme-Terra
(e a terra treme mesmo com o som ensurdecedor) - tocam de tudo, de techno a forró. Mas
ultimamente o brega tem dominado os horários mais animados da festa.
Cada vez que passei por uma festa de aparelhagem fui surpreendido por uma troca de "paradigma"
tecnológico. Vi, há não menos que 15 anos, os DJs tocando vinil, depois mudaram para CD, logo
em seguida para MD e hoje só usam MP3, fazendo mixagens com o auxílio de teclados, mouses e
monitores de tela plana. Tinha que aparecer uma música que combinasse com tal ostentação
maquínica.
Os primeiros sinais do tecnobrega foram ouvidos no verão (que no Pará se vive no meio do ano) de
2002, mas tomou realmente conta das festas de aparelhagem em 2003. É o velho brega, com batida
mais acelerada, feito só com sons de computadores. Parece um Kraftwerk de palafita, produzido sob
calor equatorial por quem escutou muito carimbó, cúmbia, zouk e Renato e Seus Blue Caps - e não
domina ainda totalmente os recursos do cut-and-paste que hoje estão na base dos softwares de
produção musical que podem ser baixados de graça em sites piratas da internet. Porém, é essa
atitude sem-cerimônias diante das máquinas que torna a música tão interessante, mais do que muito
"projeto" eletrônico-fashionista "sério" que existe por aí. Não tenho dúvida que o CD de estréia da
banda Tecno Show, a primeira tentativa do tecnobrega de lançar um disco "de verdade", "como
antigamente" (e não uma compilação feita pelos próprios camelôs), é uma das coisas mais
divertidas que apareceram na música brasileira recente.
Mesmo com CD lançado, a mídia mais importante para o Tecno Show - e outras bandas como a
Vôo Livre ou a Mega Pai D'Égua - continua a ser o MP3 que vai para os DJs das aparelhagens ou
dos programas de rádio, e para as fábricas de quintal de CDs contratadas pelos camelôs. A música
circula mais como bytes do que como objetos reais que podem ser comprados e manipulados no
mundo "não-virtual". Os músicos não têm mais gravadoras nem o custo de prensar os discos,
imprimir as capas ou distribuir os produtos - esse custo todo fica por conta dos camelôs e seus
sistemas não-oficiais de indústria e comércio. O tecnobrega assumiu a pirataria como forma de
divulgação.
De que então os músicos vivem se não ganham dinheiro com vendas de discos, nem as sociedades
de arrecadação de direitos autorais têm o mínimo controle sobre o que toca nos programas de rádio
ou nas festas de aparelhagem? Vivem das apresentações ao vivo, é claro - e nisso parecem ser
pioneiros e vanguarda da música pop em tempos pós-napster. As bandas do tecnobrega precisam da
divulgação no rádio, nas aparelhagens e no camelô para fazer sucesso e serem contratados para
shows. Por isso seus grandes sucessos são metamídia: as músicas elogiam DJs, programas de rádio
(como o Mexe Pará) e de TV, aparelhagens, fã-clubes de aparelhagens (ainda não escutei músicas
celebrando camelódromos e piratas...) E assim todo mundo encontra seu devido lugar numa nova
cadeia produtiva, totalmente descolada da economia oficial.
Quando contei tudo isso para o DJ Marlboro, principal produtor do funk carioca, ele não ficou nem
um pouco espantado e apenas comentou: quando os camelôs e os piratas se aliarem aos músicos
com contratos de exclusividade uma nova indústria fonográfica estará nascendo. Retruquei: mas aí
aparecerão os novos piratas. E assim por diante. Não há como conter ou controlar as novidades e as
dificuldades que a digitalização da cultura trazem para os antigos modos analógicos de comércio de
cultura. Ou da economia em geral.
Uma festa de aparelhagem de Belém do Pará mostra a vitalidade de uma economia paralela
brasileira e mundial, que não aparece mais nas estatísticas do Ministério da Fazenda ou do
Trabalho, nem pode ser domesticada nos acordos cada vez mais precários da Organização Mundial
do Comércio. Até as roupas que os dançarinos usam são compradas em camelôs que se abastecem
em feiras nordestinas em circuitos totalmente off-ICMS, off-notas fiscais e off-carteira-assinada.
Podemos fechar os olhos fingindo que esse mundo não existe, acreditando piamente nas estatísticas
de desemprego e fatores sociais semelhantes que são publicadas nos jornais. Podemos achar que
polícia e educação vão trazer essas outras economias para as leis oficiais e os impostos. Mas talvez
seja melhor encarar essas novidades de frente, sem ilusões (ou repressões fadadas à derrota - como
a que a indústria fonográfica ridiculamente decretou contra a troca de músicas via internet),
aprendendo com elas não a se deixar dominar pela barbárie mas sim a inventar as novas formas
caóticas - no bom sentido! - de civilização do futuro. Afinal, o que a velha economia, com seus
séculos de exploração, trouxe de realmente bom e acessível (por outra via que não a pirataria) para
quem freqüenta e ama o tecnobrega das festas de aparelhagem?
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