quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Para pensarmos o YoutubeHARMONY, postado abaixo:

Cultura sampler
Por Marcus Bastos


Prática da remixagem e da reciclagem invadiu todos os territórios de ação artística

Do fim de abril a meados de maio, entre São Paulo, Belo Horizonte e Curitiba, dezenas de artistas estarão nos palcos mostrando seus trabalhos em festivais como o Skol Beats, o Eletronika BH e o Curitiba Pop. Com exceção de Breeders, em retorno rock retrô capaz de motivar excursões indie à terra de Dalton Trevisan, as novidades vêm da música eletrônica. O ano é dos VJs (Luis Duva e Bijari, entre outros), do retorno do movimentado Bryan Gee e do projeto francês Rubin Steiner. Em comum, o uso de samplers e sintetizadores no palco.

Herdeiro dos sintetizadores (instrumentos musicais criados para produzir sons eletronicamente) o sampler permite a conversão de trechos de música em sinal digital. Cada amostra sonora pode ser alterada, dando origem a novos sons. Qual a diferença entre o sintetizador e o sampler? O primeiro produz sons inexistentes e o segundo permite a gravação, manipulação e reutilização de fontes sonoras pré-gravadas.

Do clássico Fairlight CMI, criado em 1979 pelos australianos Kim Rydie e Peter Vogel, ao hype emulado do Kontakt, da Native Instruments, o sampler evolui junto com uma cultura da remixagem.

A prática do remix surge criando polêmica e produzindo gêneros étnicos e populares de música eletrônica (como o rap e as infinitas variações da warehouse music). Hoje em dia, um duo como The Chemical Brothers desafia os autores dos trechos que eles utilizam a identificar em que parte de suas músicas aparece o sample (amostra colhida na imensa biblioteca de sons que o mundo oferece). O nível de manipulação do material sonoro é tal que se torna difícil identificar a música fonte.

O remix, já estabelecido como gênero musical (seguindo das variações eruditas e das releituras jazzísticas), migra discretamente para a literatura e as artes visuais, como apontou Lev Manovich em “Models of Autorship in New Media” (Modelos de Autoria em Novas Mídias).

Um exemplo de que a hipótese está correta é “errata :: erratum”, Marcel Duchamp em remix do DJ Spooky. O trabalho, que faz parte da galeria digital do Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles, extrapola a leitura imediata do criar variações mudando a posição dos círculos. Girando os discos de Duchamp, nesse remix em Flash de “Anemic Cinema”, a técnica do scratch ganha tintas cinéticas, numa arqueologia inesperada das formas de remixagem possíveis. Afinal, é bom lembrar, foi a arte de girar discos que abriu caminho para a cultura dos DJs.

Em áreas como as artes visuais, o cinema e a literatura, o remix é visto como violação de direitos autorais. Por isso na escrita, ao recuperar idéias de outro autor, é necessário usar marcas textuais que devem indicar a apropriação.

O termo apropriação, ligado a um contexto artístico bastante específico, não é sinônimo de remix. Ambos são formas de reciclagem, assim como a colagem, o “assemblage” e outros. Numa época em que o lixo deve ser limpo e separado, porque não pensar essas formas de reutilização como reciclagem de mídias? Não é gratuito o surgimento de expressões como “ecologia das mídias” e “ecologia cognitiva”...

A reutilização de materiais é comum na arte e na literatura do século 20. A arte moderna é um repositório de exemplos em que o resíduo ganha outro significado, quando reutilizado pelo artista. Entre outros, basta recordar: os papéis colados de Picasso, em “Garrafa de Suzie”, os jornais e ingressos em “Teatro”, de Man Ray, a pintura e a fotografia em “Eu Não a Vejo... Escondida na Floresta, de Magritte” e os documentos bancários e bilhetes de trem em “Merz”, de Kurt Schwitters.

O processo nunca foi interrompido desde então, mas é importante notar que no fim dos anos 60 altera-se a relação entre a produção artística e a indústria do entretenimento, que se torna a principal referência cultural urbana.

O reaproveitamento descontextualizado de produtos da mídia prossegue, porém agora a marca é uma proximidade irônica, ao invés do distanciamento crítico. William Burroughs inventa o cut-up; Roy Lichtenstein e Andy Warhol criam a arte pop. A apropriação se torna prática criativa comum.

Ao tirar objetos e afins de seu contexto original, o artista lhe atribui novo significado ou transfere seu valor cultural. São duas lógicas distintas, por trás do mesmo procedimento. Na reutilização, o trabalho é atribuído a quem o “criou”, mas os materiais reutilizados questionam os limites dessa autoridade. Na apropriação, o objeto anônimo se transforma em obra, mas o novo contexto implica outro sentido, resultado do gesto (anti) autoral proposto.

Com o passar dos anos, a idéia de apropriação proporciona o surgimento de novos horizontes criativos, ligados agora à tradição de reutilizar materiais. Um exemplo é Nelson Leirner, artista que lida com a apropriação de maneira exemplar. Em obras como “Projeto Care” e “Trabalhos Feitos em Cadeira de Balanço Assistindo Televisão”, Leirner recupera o imaginário do consumo e da cultura urbana, interferindo em objetos como cartões de natal e latas de refrigerante.

Em poemas como “Um Metro e Meio de Poesia”, de Gastão Debreix, “Punk Poem”, de Edgard Braga, e “Poema de Valor”, de Paulo Miranda, também ocorre a ressignificação de objetos cotidianos (a fita métrica, o alfinete, a nota de um cruzeiro). Mas, como poesia é feita em livro e livro se multiplica, o que era objeto único tirado do contexto vira página reproduzida (mesmo que artesanalmente).

Nesses trabalhos, há uma inversão do papel de autor, em efeito identificado por Tadeu Chiarelli, quando fala de Leirner. “O que Nelson faz é orte: romper com o conceito de artista, entendido como herói e, por outro lado, recuperar o sentimento anônimo e coletivo do fazer artístico.”

Seja nas artes visuais, seja na literatura, na apropriação não é a obra que vai fazer o “nome” do autor. É o nome do artista que vai lhe dar sentido. O autor funciona como motor de uma usina (re)criativa em que um suposto lixo cultural se transforma no combustível contra o também suposto iminente apagão poético.
As mídias digitais acentuam esse jogo de reciclagens, ao permitir a digitalização (e posterior manipulação). As referências são inumeráveis e contemplam um espectro de diferentes mídias e repertórios. Vão de textos clássicos da literatura (“HyperMacbeth”, música de Kid Koma, letras de William Shakespeare) a obras importantes da história do cinema (“Alpha Beta Disco: Godard Remix”, do duo americano Drop Box), passando por trilhas sonoras de videogame (“Overclocked Remix”), sites ( como o remix de “~Real” pela Jodi), imagens capturadas por webcams (“Reciclador Multi-Cultural”, da plagiarist.org) até gráficos e diagramas (“complex net art diagram - a remix of mtaa's simple net art diagram”, de Abe Linkoln).

Essa diversidade de exemplos acontece pela facilidade de digitalizar os diversos formatos de mídia. Nas mídias digitais, a manipulação de texto, imagem, som e vídeo é simples. Scanners e placas de captura podem ser usadas da mesma forma que o sampler, o instrumento musical que colhe amostras sonoras e permite que trechos de músicas sejam usadas em novas composições. De maneira similar, é possível criar imagens, sons e vídeos digitais a partir de amostras.

Outro aspecto dessa cultura de reciclagem aparece em trabalhos que lidam com o imaginário do nomadismo. Um aspecto sutil dos movimentos constantes de mídias e códigos é sua migração entre sistemas e as questões que ela acarreta. Assim, é sintomático que artistas com trabalhos pioneiros no universo do reciclável (“Recycled”, de Giselle Beiguelman, e “phone::me”, de Mark Amerika), estejam lidando com a questão do nomádico (“wopart”, de Beiguelman, e “Filmtext”, de Amerika).

A base dessa cultura é “invisível” para o usuário. É comum na programação -especialmente depois da popularização da programação orientada a objetos- a reutilização/atualização de códigos-fonte. A lógica da indústria da informática é, assim, um bom exemplo de reciclagem. Basta substituir o número depois do nome de cada programa pelo nome do diretor de programação acompanhado da palavra mix, e tudo fica mais claro -para deleite do público e azar de quem for assinar o Windows (Plug-and-pray remix) e o Windows (Xtra Problemas Version)!

Não importa a sensação de que “nos veículos de massa, esses tipos de apropriação são tão ubíquos que parecem não ter agentes”, nas palavras de Hal Foster. No entorno do universo inaugurado pelo sampler, as práticas de reutilização, apropriação e reciclagem de mídias invertem o lugar do anônimo. Nesse contexto, reciclar é marca de uma sociedade em que o excesso e a velocidade interessam por que não são nossos.

link-se
Skol Beats - http://www.skolbeats.com.br/
Eletronika BH - http://www.eletronika.com.br/
Curitiba Pop - http://www.curitibapopfestival.com/
Native Instruments Kontakt http://www.nativeinstruments.de/index.php?idókontakt_us
errata :: erratum http://www.djspooky.com/
Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles http://www.moca.org/museum
Models of Autorship in New Media http://www.manovich.net/
the HyperMacbeth http://digilander.libero.it/dlsan/macbeth/the_mac.htm
Alpha Beta Disco: Godard Remix http://www.drop-box.net/
Jodi Remix (~Real) http://www.xs4all.nl/~real/FF00FF/jodi.html
Overclocked Remix http://remix.overclocked.org/index.php
Reciclador Multicultural http://recycler.plagiarist.org/
Abe Linkoln Complex Net Art Diagram http://www.linkoln.net/complex/
Recycled http://www.desvirtual.com/recycled
Wopart http://www.desvirtual.com/wopart
phon:e:me http://phoneme.walkerart.org/
Filmtext http://www.markamerika.com/filmtext/

Marcus Bastos
É professor do curso de Tecnologia e Mídias da PUC-SP
É curador do Arte.mov
e orientador da


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