terça-feira, 27 de novembro de 2007

SONHANDO ACORDADO (THE SCIENCE OF SLEEP) de Michel Gondry - 19/09/07

Gondry não vai ver um psicólogo nunca?
Escondida nas animações de tricô, nuvens de algodão, cavalos de pano e rios de papel celofane, resiste uma estranha ditadura regida por tudo aquilo que é fofo.

Bernardo Krivochein (Rio)


O ato criativo não passa de uma manifestação de desequilíbrio emocional no aguardado terceiro longa-metragem de Michel Gondry, após o emocionado “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças”, provavelmente a “Anna Júlia” do diretor. Carreira construída em cima de vídeos que inacreditavelmente tornaram-se tão ou mais pops do que as músicas para as quais eram realizados, o (se é que já podemos chamá-lo de tal) cinema de Michel Gondry é um misto de preservação da inocência, medo aterrorizado do cinismo e diabólica manipulação moleque. Não é a ausência de Charlie Kaufman (roteirista-sensação e, por isso mesmo, já ultrapassado) que justifica a anarquia da estrutura narrativa e das imagens de “The Science of Sleep”: Gondry já passara o “A Natureza Quase Humana” inteiro tentando se impor ao roteiro do mesmo Kaufman, usando as imagens para competir com o texto em nível de originalidade. Tiroteio de virtuosismo que acontece também aqui; mas Gondry, autor do roteiro, está competindo consigo mesmo, num filme ao mesmo tempo embaraçosamente honesto e irritante, com fundações autobiográficas (Stéphane, o personagem principal interpretado por Gael García Bernal, é um artista aspirante que se muda de seu país natal para morar junto à mãe em Paris; ela consegue para o filho um trabalho numa fábrica de calendários onde ele tenta expressar-se artisticamente), mas de fachada artificializada, como se temesse tornar-se alvo de negatividade.

Na realidade, o filme, além do natural estado de paranóia que paira sobre sua totalidade (mais sobre isso a seguir), poderia se beneficiar de real esquizofrenia. O que se faz passar por saudável autocrítica, uma vez que o personagem principal é retratado de maneira até antipática (frustrado, passa a exercer seu autoritarismo em seu universo interior e aterrorizando psicologicamente as pessoas ao seu redor), transforma-se quando ele passa a ser agredido pelo estoicismo e banalidade das pessoas ao seu redor: Gondry lucidamente articula sua trama para que Stéphane se heroifique, não por virtudes, mas comparativamente frente à inferioridade e crueldade dos demais. Em seu mundo interior, Stéphane exercita toda sua raiva, seu desprezo pelo mundo exterior, seu recalque de relacionamentos frustrados. Na figura de sua vizinha Stephanie (Charlotte Gainsbourg), com quem desenvolve um relacionamento dependente tipicamente edipiano (Gondry não vai ver um psicólogo?), ele imagina finalmente encontrar a parceira ideal, com a qual poderá criar um universo fantástico privado onde possa perpetuar seu reino de terror, tal qual uma criança pisoteando sua mini-cidade de Lego. Stephanie, no entanto, não tem vergonha de pertencer à esfera dos mortais e isso desencadeia em Stéphane uma série de mal-entendidos e auto-boicotes. Temendo que as pessoas (pelas quais ele realmente gostaria de ser melhor aceito) venham um dia a descobrir a forma como ele arrogantemente as dispensava, Stéphane as rejeita logo de início, tornando-se algoz de si mesmo. O filme acaba justamente antes da situação degringolar para o eventual assassinato de Stephanie e ascensão de Stéphane num novo Hitler de pelúcia.

Assim como “A Cela” do clipeiro Tarsem, Gondry recorre à sua enciclopédia pessoal de imagens originais e as reutiliza – portanto, desoriginalizando-as – em busca de dar às criações publicitárias (a função fundamental do videoclipe ainda é comercializar a música) um sentido cinematográfico. Ao contrário de artistas que bebem de outras fontes e as integram à linguagem cinematográfica, não há reinvenção digna de notas neste Gondry nem naquele Tarsem, baseados na arcaicidade do conceito de originalidade (imagens minhas), um autopoliciamento castrador que sacrifica tudo em nome da surpresa artificial do espectador, a auto-suficiência do 100% novo (e que nem o é, já que o espectador, vítima voluntária ou colateral da cultura de massa, canta na hora de qual clipe e banda as imagens vieram; ainda que servissem para a causa da justificação artística do pop, mas elas só estão lá, empalidecidas de uma tese maior). O sentido primário da “história” que rege “The Science of Sleep” é justamente acomodar as imagens selecionadas por Gondry num complexo narrativo linear, ou pelo menos compreensível. Torna-se apenas previsível que a grande ânsia de Stéphane seja a de ter alguém com quem compartilhar. Quase uma petição para o isolamento dos artistas em outro planeta, se o ideal para Gondry é a separação dos iluminados da gentry, deveríamos nos perguntar de onde ele tiraria inspiração, para quem mostraria suas obras e por que sequer a fantasia de exibi-las. Escondida nas animações de tricô, nuvens de algodão, cavalos de pano e rios de papel celofane, resiste uma estranha ditadura regida por tudo aquilo que é fofo.

“The Science of Sleep/ Le Science des Rêves” EUA/França/Espanha, 2006. 105min. Direção: Michel Gondry. Estrelando: Gael García Bernal, Charlotte Gainsbourg, Alain Chabat, Miou-Miou, Pierre Vaneck. Distribuidora: Warner Independent Pictures. Site oficial: http://wip.warnerbros.com/scienceofsleep/

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