quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Capítulo 03 - O contrário do Cinema

"O corpo enquanto notação musical no hiperespaço saturado da pista de dança - uma cartografia deslizante da paisagem sonora ciborgue" [Monografia de conclusão de curso - Comunicação Social/ UFES], de Menotti.

Se existe uma grande razão para a cultura ocidental ter sido tão receptiva com esse espaço incoerente, passível de ser reduzido a um código e transmitido através de cabos e monitores, é que nossa apreensão e representação do mundo sempre foram baseadas em um único sentido, já completamente codificado: a visão.

A partir da Renascença, a sistematização do olhar tornou-se um projeto tecno-cultural, em paralelo à automatização da imagem. Em busca da fidelidade figurativa, foram consolidadas regras matemáticas para a representação em perspectiva de projeção central, que conferia ilusão de profundidade à tela. O modelo havia sido retirado da câmara obscura, um sistema que os pintores do Quattrocento utilizavam para a reprodução de paisagens.

A câmara era efetivamente um quarto, completamente escuro, com um pequeno orifício para a entrada de luz. Através dessa fresta, por um capricho óptico, a imagem do exterior era projetada na parede oposta – ao pintor bastava preencher os contornos com tinta para fixá-la.

Essa técnica atingiu proporções industriais com a invenção da fotografia, que automatizava quimicamente o processo de registro da imagem. Com ela, a imagem parecia se fazer sozinha, como um produto óbvio da natureza. A ação humana havia se deslocado da representação em si para a definição de certas estruturas contextuais do processo, como o enquadramento e o momento exato de apertar o botão.[1]

Com o cinema, a fotografia passa a dar conta da reconstituição visual do movimento, e a visão perspectiva ganha a capacidade de imitar o espaço em todas as suas dimensões relativísticas – inclusive o tempo. Através da sala de projeção, esse modelo atingiu as massas e sistematizou nossa forma de ver o mundo. Nossa experimentação da realidade passou a se concentrar na visão perspectiva do espaço.

Do Cinema à Realidade Virtual: o Olho como Plug

Inicialmente, o filme cinematográfico não era utilizado para contar histórias. Enquanto ainda era encarado como mera fotografia em movimento, não passava do hobby extravagente de inventores (Thomas Edison) e fabricante de aparelho óticos (os Lumiére), com a desculpa de documentar a vida cotidiana. Já então ele possuía uma função de entretenimento, como a impressionante curiosidade científica que era, mas de uma forma diferente da que seria consolidada por Hollywood. A projeção ainda não era cinema, e sim experimentação cognitiva.

Em cada sessão eram apresentados vários filminhos, como em um programa de clipes da MTV. Eles não demandavam a atenção constante do espectador, porque não havia fio da meada a ser perdido – tanto que suas primeiras exibições públicas ocorreram em cafés[2] e teatros, como se fosse mais uma prestidigitação, um ato do show de variedades parisiense. Esse formato foi levado ao seu estado sublime por um ilusionista profissional, George Mélies. Os filmes de Mélies eram verdadeiramente truques de mágica, que se utilizavam da película projetada como se fosse um jogo de espelhos que a platéia distraída não percebesse.

Conforme o projeto industrial capitalista transformava a projeção em um discurso para ser consumido e formar consumidores, era necessário que sua estrutura fosse radicalmente mudada. A narrativa demandava o arrebatamento completo do espectador; surgia a necessidade de embotar seus outros sentidos e fazê-lo se concentrar na visão do filme.

Com o cinema narrativo, foram criados espaços especializados para evitar que o espectador se distraísse, e mantivesse os olhos presos na história. Na sala de projeção, tudo era conjugado de forma a reforçar a ilusão da tela e, através dela, suprir o espectador com uma experiência falsamente sinestésica, que não deixasse nenhum de seus sentidos livres. Ele sentava paralisado para submeter o seu ponto de vista ao ponto de fuga da imagem.

Mesmo a trilha sonora, embora aparentemente faça parte do discurso do filme, desempenha muito mais um papel dentro da estrutura de simulação: duplicar as imagens e fazê-las ocupar não um, mas dois sentidos do espectador, inibindo conversas paralelas, preenchendo um vazio que poderia prejudicar sua atenção. Embora o cinema seja um discurso audiovisual completo, “há música no cinema, mas não música de cinema”, da mesma forma que havia na ópera, no melodrama, no teatro, no circo ou nos espetáculos de variedades.[3]

Assim, o cinema contaminou a cultura ocidental com um modelo de cognição que remonta, quase totalmente, ao modelo de perspectiva Renascentista. Experimentamos o mundo como um filme 360º – com nossos órgãos de percepção quase todos atrofiados pela falta de uso, escutamos, sentimos e cheiramos através de olhos mal-acostumados.

Podemos perceber o quanto esse vício tecno-cultural contaminou a nossa noção de mundo quando examinamos os sistemas experimentais de Realidade Virtual. Neles, a recriação artificial da realidade não passa de uma simulação meramente visual, baseada em óculos especiais que intensificam e automatizam a ilusão da perspectiva central. Toda percepção tátil do espaço é reduzida a um par de power-gloves, luvas que servem mais como controle remoto do que como estimuladores sensoriais.

Graças ao condicionamento do cinema, a imersão visual se torna uma imersão completa.

Indústria, produto e mídia

Grosso modo, a pista de dança é preparada com os mesmos ingredientes do cinema: corpos, sons e imagens industrializadas. Assim, embora sua natureza seja completamente diferente, eles compartilham de um certo parentesco, como um ovo frito e um cozido.

A principal distinção é que, enquanto um espaço é engendrado a partir da imagem em projeção perspectiva central (em movimento), o outro o é a partir do som. Essa que, à primeira vista, parece uma simples diferença de mídia, vai refletir profundamente na configuração e no posicionamento dos corpos em cada um desses ambientes.

O set, a seqüência de músicas, não ocupa na pista o mesmo lugar que a projeção no cinema. A projeção, concentrada em um ponto único do ambiente, provoca uma catástrofe gravitacional no espaço cognitivo. Seu enorme peso semântico curva o espaço em sua direção, atraindo corpos e atenções como um buraco negro.

O set, pelo contrário, ensopa o ambiente, criando uma gravidade difusa, propícia à deriva. A música atinge os corpos superexcitados como uma suave ondulação nuclear, dispersando atenções e provocando a dança.

O cinema imita a câmara escura, onde entramos para participar de uma história. Sentamos na cadeira e desligamos, somos tragados pela tela – nossa atenção dá movimento à narrativa, como baterias eletroquímicas. A história parasita nossa energia para existir, a tal ponto que nos invalida. Não conseguimos sequer nos mexer.

Na pista, pelo contrário, são os sons e imagens que entram no corpo. Nossa falta de concentração nos torna presas fáceis para o impulso primitivo que a paisagem sonora desperta. É um cinema que nos invade e nos coloca em movimento – mas, ao invés de nos ocupar totalmente, nos deixa vulneráveis a outros estímulos sensoriais.

Uma forma de esclarecer a diferença exata entre as duas estruturas é através do papel desempenhado pelo DJ e pelo projetista, os homens por trás do cenário. A princípio, entre trocar rolos de filmes e faixas de discos, o trabalho de ambos é muito parecido: devem realizá-lo sem que a platéia perceba – um para manter a continuidade da história, e o outro, da dança.

Acontece que o projetista desempenha uma função negativa: deve evitar que o filme produzido se desmantele durante a exibição, repetida ad nauseam por toda a temporada. Ele é, ainda, o funcionário de uma sociedade cartesiana, uma peça sujeita ao mecanismo do projetor e da indústria.

O DJ, por sua vez, realiza um trabalho positivo: pretende criar um todo coerente, uno e efêmero, a partir de músicas diversas. Sua utilização da tecnologia como meio criativo/efetivo é o perfeito exemplo de uma interação ciborgue saudável – por mais que possa servir, na opinião de certos críticos, a um propósito hedonista e alienante.

Essa autonomia que o jockey possui sobre a reprodução das música não é, certamente, devida a nenhum resquício de aura artística. Quando as big bands sumiram das pistas, pouco respeito foi legado aos seus sucessores solitários. O músico ainda se fazia presente à distância, através de sua voz gravada em 33 rotações. Portanto, o DJ tinha que respeitar religiosamente o começo e o fim de cada faixa, e enfileirá-las nos sets de forma comportada, como fotografias dos mortos em um álbum empoeirado.

O que lhe deu real poder foi a transformação não só da música, mas principalmente do artista, enquanto produtos da indústria cultural. A consolidação do formato pop, de ritmo bem marcado e estrutura melódica simples, possuía um apelo primitivo que privilegiava muito mais as sensações imediatas do que a audição cuidadosa.

O músico, simultaneamente, degradava-se em celebridade mundana. Bem vivo e sempre presente, ele aparecia na tevê, tocava nas rádios, vendia discos, fazia shows. Dentro desse excesso de exposição criado pela estrutura do mercado, a pista tinha a função de eternizar a gravação – tornando-a, por alguns momentos, passageira. A música descartável encontrava sua verdadeira aptidão nas mãos do DJ, repentinamente transformado em xamã espetacular, alquimista, artista do porte de grandes estrelas do rock.

Esse formato consolida a pista como um importante ponto de contato do público com a música – função que vai se tornar ainda mais intensa conforme as tecnologias digitais deixam a indústria fonográfica obsoleta e destroem seu papel de mídia.

O barateamento das estruturas de produção contribuiu para sua dinamização, permitindo um diálogo intenso com a distribuição e o consumo. Graças aos computadores pessoais, o custo de produzir música “caseira” com qualidade é muito baixo – e o feedback, instantâneo.

Com sua estrutura semi-aberta e experimental, a pista se mostra a mídia perfeita conforme esse novo modelo. Ela cria uma primeira fissura entre o território livre da Internet e o campo minado do mercado: fervilha com remixes feitos e queimados em CD minutos antes de a festa começar – ou mesmo durante, nos live PAs e nos picapes.

Gravadoras e selos pequenos, e mesmo produtores independentes, têm optado por lançar suas faixas diretamente na pista de dança. Eles distribuem tiragens limitadas de LPs, chamados dubplates, para DJs especialmente selecionados. É a aceitação desses dubplates pelo público imediato que vai definir sua estratégia de distribuição em meios tradicionais, seja a venda em lojas ou a veiculação nas rádios.

Enquanto isso, o cinema ainda obedece a um pesado e custoso sistema, sujeito aos caprichos das distribuidoras e das salas de exibição. Se você chegar em qualquer uma com seu filme debaixo do braço, armado com uma proposta irrecusável que inclua sua casa, família e a integridade de sua alma imortal, é bem capaz de dar com o nariz na porta.

Claro que não precisa ser assim. Daqui a não muito tempo, as tecnologias digitais prometem fazer com os filmes o mesmo que fizeram com a música. O projeto de extensão Videoclube Falcatrua, que alunos do curso de Comunicação Social da UFES tocam desde o começo de 2004, busca justamente experimentar uma estrutura acessível de distribuição e exibição cinematográfica, que se utiliza de programas P2P,[4] computadores e datashow – e tem sido muito bem sucedido dentro de sua proposta.

Não obstante, na medida em que o filme deixa de ser película, ele se torna muito mais vulnerável à vontade do projetista e à arquitetura do ambiente. É interessante ver como essa estrutura funciona dentro da pista, um espaço cuja quinta dimensão imediata é a paisagem sonora. Os VJs, que editam vídeos para serem exibidos ao vivo no local, reprocessam a projeção narrativa e transformam-na em uma experiência sensorial que concorre com o set.

Eles trabalham com imagens como se fossem nacos de som, seguindo padrões ritmo-harmônicos, como faria um DJ: “Os próprios softwares de manipulação de vídeo tomam emprestado do universo do áudio não apenas suas interfaces e sua lógica intrínseca como em muitos casos são os mesmos.”[5]

No cinema mudo, a música duplicava o filme de forma caricata, buscando afetar o espectador onde a imagem não afetava, e dar-lhe um verniz de real. Na pista, acontece o contrário: a projeção tenta perseguir a música como um táxi que segue o carro suspeito, através do trânsito caótico, sem saber exatamente para onde ir. Dessa forma, ela adquire a mesma consistência do som, e qualquer resquício da perspectiva central é destruído.

Sequer a platéia permanece estática para se sujeitar a um ponto de fuga único. Cada espectador, com seu próprio ponto de vista deslizante, cria o filme dentro de si, colando indiscriminadamente elementos tecno-orgânicos: a projeção, que às vezes acontece em mais de um telão, se confunde com os corpos que dançam, os fachos de luzes, a fumaça de gelo seco. Tudo o que restou da película foi o vão entre os frames, o flickering da luz estroboscópica.

Assim como o cinema serviu para sistematizar a visão, e concentrar nela toda a experiência de cognição ocidental, a pista pode ser usada para desconstruir o olhar e devolver os sentidos aos seus respectivos órgãos. Trata-se do perfeito mecanismo cultural de massa para desorganizar a percepção civilizada.

Mind Machine coletiva

Outro motivo para a visão ter sido utilizada como o sentido preferido do ciberespaço é que ela é fotossensível, elétrica – aparentemente, muito mais próxima das sinapses cerebrais do que qualquer outro estímulo. Por isso, a forma mais econômica de simular uma realidade sinestésica parecia ser através dela.

Mas, pelo contrário, as imagens precisam atravessar um filtro psicológico-técnico-cultural para transmitir sensações complexas. A experiência nos prova que a forma mais fácil de influenciar diretamente o cérebro, sem precisar de cirurgias ou substâncias, é através do som.

Essa teoria parte do princípio de que nosso cérebro trabalha em diferentes freqüências, conforme a atividade que desempenha, e que seja possível alterar essas freqüências através de um estimulo externo – notadamente, sonoro.[6] É um truque utilizado nas mais diversas formas de meditação e estados de consciência alterada: o zumbido do AUM, a batida dos tambores rituais.

A indústria busca comercializar esse processo nas mind machines, máquinas de meditação e programação cerebral. Trata-se de bugigangas audiovisuais compostas por um gerador de frequências sonoras e um jogo de luzes pessoais, normalmente montado em um par de óculos. O usuário pode configurar a mind machine em determinada freqüência e deixar que ela, através de estímulos audiovisuais, sincronize seu cérebro com o estado de consciência desejado.

Embora pareça tudo uma grande baboseira tecno-holística, é inegável que a música seja capaz de provocar humores poderosos no ser humano, e mesmo condicionar seu corpo. Não é à toa que se escuta um tecno eufórico para fazer exercícios, ou uma sinfonia de texturas para escrever uma tese de mestrado. A música funciona como um regulador do organismo.

No campo de batalha isso é muito marcante. As canções eram usadas para aterrorizar o inimigo, levantar o moral do exército e sincronizar o pelotão como um corpo único. A ilustração perfeita é uma cena do filme Apocalypse Now, quando vários helicópteros se aproximam da baía vietnamita ao som da Cavalgada das Valquírias. Originalmente, o general bota a música para tocar em uma vitrola, diegeticamente, e logo ela domina todo o espaço, se torna trilha sonora do filme, coreografando o ataque como um videoclipe.

Nesse sentido, a pista de dança funciona como uma imensa mind machine coletiva, uma arquitetura para a indução de estados de consciência específicos. Ela trabalha com estímulos que ainda não foram completamente domesticados e atingem áreas virgens do cérebro, supersensíveis. O corpo exaurido se deixa levar facilmente pelos sons graves, pela luz estrobo. O ecstasy, droga fartamente consumida na pista, potencializa sua sensibilidade tátil, transformando-o em um imenso tímpano.

Na pista, o ciberespaço se estabelece não através de uma simulação, de códigos figurativos comuns às pessoas, mas de estímulos sensoriais brutos, assignificantes, que são imediatamente traduzidos em posturas, movimentos, sensações. Corpos e espaço se fundem através da paisagem sonora.

“Rompem-se as barreiras da proximidade e do temor do contato, a densidade crescente induz a uma integração quase instantânea, e então esses corpos humanos que até ali agiam como indivíduos isolados passam a se comportar como componentes de uma unidade mais ampla, uma unidade multicorporal, que é a massa.”[7]

Assim se dá a formação de um corpo coletivo, conforme definido pelo pesquisador Elias Canetti. Através dele é possível utilizar as conexões sensoriais na construção de um hiperespaço, efetivando o virtual – capacidade que parece faltar à inteligência coletiva incensada pelas teorias cibernéticas da comunicação social, como sabe qualquer um que já tenha freqüentado uma lista de discussão por e-mail.

“Todos somos um Outro em potencial, basta que múltiplos corpos se toquem: a massa é nossa virtualidade. É preciso ressalvar que o termo virtual costuma hoje em dia estar associado à chamada ‘realidade virtual’, ou seja, à produção de puras imagens, impalpáveis, incorporais e portanto incapazes de realizar alguma ação no mundo. Todavia, como Canetti não se cansa de demonstrar, trata-se aqui de uma potência absolutamente concreta de estabelecer ligações, de formar novas unidades, de integrar o disperso.”[8]

Sinestesia Mediada

Logo, o que a pista de dança faz não é simplesmente substituir um ciberespaço visual, do pensamento abstrato, por outro sonoro, da sensação orgânica. Embora tenha sua espinha dorsal construída sobre música, ela abre o corpo a estímulos sinestésicos, sem privilegiar nenhum sentido em especial.

Trata-se de um espaço tecnologicamente carregado, produto de suportes digitais que, por natureza, “trazem em si a vocação para a sinestesia e a complementaridade”.[9] Como vimos antes, o código binário é simplesmente uma cadeia de zeros e uns, uma organização formal etérea. A forma analógica que ele assume depende do algoritmo que vai interpretá-lo dentro do sistema.

Partindo desse princípio, certos programas de síntese auditiva utilizam arquivos de imagem como bases para novos timbres. Eles analisam a cadeia binária por trás de um retrato através de outro algoritmo de leitura, e a partir dele obtêm um som único. Você pode experimentar algo semelhante se abrir um arquivo de música em um editor de texto. O editor obviamente lerá aquele arquivo como se fosse texto, e o resultado será algo muito próximo da poesia futurista.

Esse comportamento se assemelha às constantes de forma que existem dentro da teoria de sinestesia de Richard Cytowic:

“A idéia de constantes de forma sugere que formas e variações de brilho, cor, movimento, simetria e réplica, por exemplo, representam aspectos da experiência subjetiva que não pertencem somente à visão, mas a todos os sentidos (dessa maneira, são coerentes com a idéia de dimensões da percepção).”[10]

Estímulos de diferentes naturezas podem possuir parâmetros binários equivalentes. Dessa forma, a utilização de mecanismos de conversão digital permite criar uma comunicação sinestésica efetiva.

Os mecanismos podem estar adaptados tanto ao corpo quanto ao próprio ambiente ciborgue, pluralizando as interfaces entre o homem e o ciberespaço. Eles permitem, por exemplo, afetar a música a partir de um estímulo visual ou tátil, como a própria dança.

Assim faz a Drum Suit, roupa da artista Laurie Anderson que emite sons de bateria conforme seus movimentos corporais. Ou o Theremin, o emblemático instrumento eletrônico que cria freqüências sonoras de acordo com a posição das mãos do músico.

“Outro exemplo, içado do meio do século passado, é Variations V (1965), do coreógrafo Merce Cunningham. Nesta obra os bailarinos dançavam entre antenas com células foto-elétricas que disparavam sinais para o console dos músicos (John Cage e David Tudor) por onde os sons eram gerados. Em outra obra de Cunningham, TV Rerun (1972), o som era gerado pelos músicos a partir dos sinais enviados pelos sensores presos ao cinto do bailarino.”[11]

A pista já possui um regulador multimídia na figura do DJ: ele percebe o ambiente esvaziar e troca de música rapidinho. Mas as tecnologias digitais guardam a possibilidade de automatizar o processo, eliminando o elemento humano, e torná-lo muito mais sofisticado.

Em um ciberespaço onde o código e suas representações se confundem e se atualizam mutuamente, o mapa é o território. E, graças à consistência metamórfica da softcopy, também pode ser uma partitura, onde os corpos aparecem como notas furiosas.

Sensores podem capturar a imagem da pista e, através dela, regular a programação musical que vai posicionar os corpos. Dessa forma o sistema se fecha, e se torna completamente homeostático, sem perder o caos inerente que lhe permite dar à luz uma estrela dançarina.

Mapeamento Comportamental de um Ambiente Esquizofrênico

E eis que voltamos ao ponto de partida deste trabalho, que é a cartografia da pista de dança. Como mapear um ambiente tão complexo? Ou talvez a primeira pergunta seja o quê mapear?

Uma vez que os vários elementos envolvidos – música, projeção, dança – criam dimensões que se afetam de maneira recíproca, a partir de qualquer um poderíamos deduzir os outros, obtendo uma representação tão arbitrária quanto a projeção perspectiva.[12] No entanto, motivos que não vejo como justificar sem o uso da palavra humanista nos levam a privilegiar o lado orgânico do ciborgue – o homem, operador central que as diversas dimensões do ciberespaço atravessam.

Assim, poderíamos utilizar uma técnica análoga ao mapeamento comportamental, desenvolvida por psicólogos ambientais para dar conta dos usos e costumes em determinado espaço. Essa técnica consiste tão somente em monitorar o ambiente durante determinado período, executando croquis que representem a movimentação das pessoas. Esses croquis nos informam uma determinada topografia daquele território.

A intensidade e sofisticação dos movimentos humanos na pista nos obrigam a utilizar um método mais robusto de produção de imagens. É aí que entra a fotografia digital.

Assim como a pista de dança é o contrário do cinema, a fotografia digital pode ser considerada oposta à convencional – de certa forma muito mais bem adaptada a um ambiente ciborgue, não somente por causa do tipo de imagem que produz, mas especialmente no que tange à ação de fotografar.

Câmera vem do italiano “quarto”, ou seja: um lugar onde se entra. Assim era nas câmeras obscuras tradicionais, e também nas câmeras fotográficas que herdaram seus princípios. Elas funcionam como túneis que atravessamos em direção à imagem. Nosso corpo passa por eles inteiro, sendo transformado em um grande olho que a objetiva comprime contra a parede – ficamos paralisados; é até difícil enquadrar.

A câmera digital, pelo contrário, traz a imagem para a palma de nossa mão. O LCD[13] já apresenta a foto processada, composta segundo padrões definidos pelo operador – é o mind’s eye do fotógrafo, efetivado durante o próprio ato fotográfico. Através da simulação no visor de cristal líquido, temos a imagem sob nosso completo controle; ela se revela instantaneamente. A objetiva passa a ser um aspirador que captura a imagem e a insere em nós, em nosso complexo ciborgue.

Mas, embora seja mais fácil controlar a imagem, é mais difícil manter sua estabilidade. A fotografia através do cristal líquido está sujeita a todo nosso corpo. Ela é feita não com o olho, mas com nossos braços, pernas e pescoço – que, na pista, estão sujeitos à música, a estímulos diversos, a outros corpos.

Assim, a dinâmica digital incorpora definitivamente a reflexividade ao ato fotográfico. Reflexividade é o processo pelo qual, nas palavras de Katherine Hayles, aquilo que foi usado para gerar um sistema passa a fazer parte do sistema gerado.[14]

O fotógrafo passa a fazer parte da fotografia como Pollock fazia parte de suas telas, que não eram composições organizadas segundo padrões abstratos de equilíbrio, mas impressões do corpo do artista através de borrões e jatos de tinta. E a fotografia passa a fazer parte do ambiente porque, como imagem-máquina, o atualiza em tempo real, de formas extremamente sofisticadas.

Nessas fotografias, corpo e espaço se confundem, e a pista se torna uma figura única sobre um fundo implícito, que é a paisagem sonora. Cada imagem representa graficamente um estado efêmero da música – seu efeito nas pessoas, no ambiente, no fotógrafo –, como uma partitura complexa que um sistema dedicado possa interpretar.

O estar na pista, dançando, é um estar em deriva. A saturação de elementos visuais desestabiliza os instrumentos convencionais de navegação e representação. Toda forma de se orientar é tátil – subgraves abraçam e manipulam seu corpo, definindo direções cada vez mais novas.

Percorrer a pista não leva você a lugar nenhum – mas leva a pista a todos os lugares. O próprio espaço está em mutação. Assim, ainda que haja equilíbrio entre os algoritmos de processamento da imagem e do som, o movimento errático da dança mantém o sistema em aberto.



[1] Tema sobre o qual Arlindo Machado faz uma brilhante digressão em A Ilusão EspecularA Ilusão Especular. São Paulo: Brasiliense, 1984). (MACHADO, Arlindo.

[2] É interessante aqui falar do paralelo que, segundo Margaret Wertheim, o especialista em literatura Brian Connery traça entre os cafés do século XVII e a utopia democrática do ciberespaço. “Como o ciberespaço, esses primeiros cafés proporcionavam um novo espaço social em que as pessoas podiam se misturar através das linhas de classe, pondo nobres ombro a ombro com comerciantes. [...] Sob esse aspecto, constituíam uma espécie de experimento social utópico, que, como o ciberespaço, encerrava a promessa de uma sociedade mais igual para todos.” (WERTHEIM, página 212)

[3] BASBAUM, Sérgio Roclaw. Sinestesia, Arte e Tecnologia: Fundamentos da Cromossonia. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2002, p. 123.

[4] Que servem para transferência direta de arquivo entre usuários.

[5] BAMBOZZI, Lucas. Outros Cinemas. Disponível em: . P. 8.

[6] “Cada pensamento, sentimento, sensação e nível de atenção possui um padrão cerebral de onda correspondente. Se você quiser controlar sua experiência, aprenda a controlar suas ondas cerebrais”, ensina o panfleto Mind Gear (tradução nossa).

[7] Apud OLIVEIRA, op. cit., p. 159.

[8] Ibid. Grifo nosso.

[9] BASBAUM, op. cit., p. 167.

[10] Ibid, p. 43.

[11] SANTANA, op. cit., p. 6.

[12] WERTHEIM, op. cit., p. 145.

[13] Liquid crystal diode, a tela de cristal líquido. Há quem diga que ela não passe de uma bijuteria das câmeras compactas, uma vez que os modelos realmente sofisticados (e caros) utilizam o sistema de objetivas consagrado nas máquinas reflex. Acontece que esse sistema, formado pela dupla espelho-pentaprisma, existe tão somente para proteger o filme da luz enquanto o fotógrafo enquadra a cena – o que não é necessário no sistema de captação digital, que funciona a partir de um sensor CCD herdado das câmeras de vídeo, e cuja sensibilidade é acionada no momento exato da captura. O sensor torna obsoleto não só o princípio reflex como o próprio fotômetro, uma vez que ele pode informar o estado da imagem capturada em tempo real, dispensando abstrações. Seria melhor que, no visor dessas câmeras, houvesse um pequeno monitor, como nas câmeras de vídeo. Insistir no modelo da câmera reflex é sujeitar o suporte digital a um princípio mecânico que só tem sentido de existir por razões puramente ergonômicas – assim como o efeito sonoro que alguns celulares fazem, ao fotografar.

[14] HAYLES, op. cit., p. 8.



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