terça-feira, 30 de outubro de 2007

Entrevista com Carlos Reichenbach em 2005

Sessões do Comodoro - Carlos, de onde surgiu a idéia das "Sessões Duplas do Comodoro"?
Carlos Reichenbach - As Sessões Duplas do Comodoro nasceram no meu blog REDUTO DO COMODORO, inspiradas nas saudosas "Sessões Malditas", do cine Marachá (rua Augusta) na década de 70, organizadas pelo professor Álvaro Moya e nas sessões "Raros", que acontecem mensalmente na Sala P.F.Gastal, em Porto Alegre, organizadas pelo Marcos Mello e o Carlos Thomas Albornoz.. Com a minha descoberta das possibilidades infinitas do contato direto com cinéfilos, amigos e estudiosos de cinema, proporcionadas pelo blog, me dei conta da dificuldade que a maioria dos leitores tinha de conhecer os filmes que discutíamos à exaustão, especialmente os filmes do chamado "cinema extremo" (aqueles que radicalizam a proposta de um cinema de gênero, as vertentes experimentais, provocadoras e subversivas). O conceito de "cinema extremo" foi amplamente discutido por Amos Vogel, em seu livro "O Cinema como Arte Subversiva". No início, pensei em juntar amigos e alguns fiéis do blog num pequeno espaço para sessões mensais de vídeos e DVDs raros, igual as que eram feitas no Rio de Janeiro por Walter Lima Junior e seus amigos. Mas, durante o Festival de Cinema de Recife de 2004 encontrei o Luiz Zakir, do CineSesc, e ele me sugeriu fazer as tais sessões gratuitas e num espaço bem maior. A idéia era reciclar a nossa veia cineclubista. Topei imediatamente. Eu não ganho um tostão com isso, mas dá uma satisfação imensa ver concretizada a idéia inicial de "socializar" acervos, conhecer os filmes e discuti-los no contato direto e imediato com os meus amigos, leitores e colegas de Web.

Sessões do Comodoro - E da idéia inicial até a execução, como foi?
Carlos Reichenbach - Foi tudo muito rápido. Três meses depois do festival acontecia a primeira Sessão Dupla. A idéia de fazer sessões com dois filmes (e não centralizar a atenção num único filme) foi inspirada na voracidade cinéfila da minha adolescência - quando eu freqüentei assiduamente os saudosos Cinemundi (na Praça da Sé), que exibia três filmes por sessão, o Cometa (na rua Aurora), que exibia quatro filmes direto, e numa sala da Praça da República que passava filmes diferentes, 24 horas por dia. Era genial porque não havia propriamente uma seleção de filmes por gênero ou qualidade; exibia-se tudo, do melhor e do pior. O crivo de qualidade era definido pelo espectador. Na sala da Praça da República, o sujeito entrava sem saber o filme que iria ver. Foram muitas as surpresas e descobertas que eu tive nestas sessões. Por outro lado, centralizar a atenção num único filme dá sempre a impressão de que a curadoria tenta impingir o seu gosto pessoal aos freqüentadores assíduos. Eu não programo somente os filmes que eu gosto. Minha única preocupação é a dificuldade de acesso a certos filmes. Dou sempre preferência aos filmes que jamais seriam mostrados em sessões comerciais ou que sejam importantes rever em cópias recém-restauradas. Eu nunca programo filmes que tenham distribuição no Brasil; somente alguns que são autorizados pelo seu distribuidor.

Sessões do Comodoro – Você enfrentou algum tipo de problema burocrático para colocar esse projeto em prática?
Carlos Reichenbach - Não, porque a proposta não possui nenhum caráter comercial. Ao contrário, as Sessões Duplas é, antes de tudo, uma reunião de aficionados pelo cinema anticonvencional. Repito, nem eu e nem o CineSesc ganhamos um centavo com estas sessões; embora elas dêem trabalho para acontecer.

Sessões do Comodoro - Para você, que tem centenas de referências, é difícil selecionar os filmes que serão exibidos? Como é feita essa seleção?
Carlos Reichenbach - O crivo principal é o acesso difícil a certos filmes. Às vezes um amigo avisa que possui uma cópia de um filme raro e então eu arrumo uma forma de encaixá-lo na programação. A idéia sempre foi essa: socializar os acervos pessoais. A escolha dos filmes busca sempre encontrar alguma identidade entre eles. Há uma comunidade REDUTO DO COMODORO, no Orkut, onde são feitas algumas sugestões dos freqüentadores habituais. Pediram filmes do Lucio Fulci e eu escolhi um dos menos conhecidos, "VOZES PROFUNDAS"; teve gente que adorou e outros que detestaram. Faz parte.

Sessões do Comodoro - Quando você realizou a primeira sessão no CineSesc, qual era sua expectativa?
Carlos Reichenbach - Eu esperava um público específico e levei um susto muito grande quando vi a fila que se formou na rua Augusta, na frente do CINESESC, uma hora antes da sessão. Foi bom e ruim ao mesmo tempo. Sei que muita gente deixou de voltar às sessões, por não ter conseguido entrar no cinema no primeiro evento; o CINESESC possui 350 poltronas. Em compensação, descobrimos que há muita gente interessada no cinema à margem do sistema. Os aficionados reclamam da presença de um determinado público, que ri nas horas mais inesperadas, mas nem eu e nem CINESESC escolhemos a platéia. A entrada é livre e só é evitado o acesso à menores de idade. Afinal, os filmes mostrados exigem um mínimo de discernimento e tolerância.

Sessões do Comodoro - E hoje, está satisfeito com os resultados do projeto?
Carlos Reichenbach - Estou impressionado com a maturidade da platéia que comparece no cinema, mesmo sabendo que o filme vai ser projetado com legendas em inglês ou francês. Eu só tinha visto isso no Festival de Rotterdam, ou (por razões óbvias) na Suíça (no Festival de Locarno, onde os filmes são projetados em praça pública com dupla legenda). Espero ansiosamente o dia em que não seja nem necessário avisar ou divulgar os filmes que serão exibidos; como num pacto de confiança entre as Sessões Duplas e seu público. Seria fantástico!
Uma das coisas que mais me alegram nestes encontros mensais e ver a platéia trocando livros, vídeos e DVDs, entre uma sessão e outra. Ora, esse convívio entre cinéfilos e experts sempre foi a razão das Sessões Duplas.

Sessões do Comodoro - Como você imagina que projetos parecidos com as "Sessões Duplas do Comodoro" podem ajudar na formação de novos estudantes da área (cinema, jornalismo, publicidade, audiovisual, etc.)?
Carlos Reichenbach - Sobretudo pelo hábito de acompanhar (e compreender) um filme sem a "bengala" das legendas em português. Quando eu dei aula no curso de cinema da ECA/USP, eu exibia marcos do cinema japonês, sem legendas. Não deixa de ser uma forma de aprender a "enxergar" os filmes. Preocupa-se menos com o conteúdo e muito mais com a encenação (a chamada mise-em-scène), Para quem pretende fazer cinema, é essencial.

Sessões do Comodoro - Você tem algum outro projeto nessa mesma linha? (Se sim, por favor, nos esclareça.).
Carlos Reichenbach - Ando empenhado em estabelecer uma parceria com o Eugênio Puppo, que foi o curador e responsável pela Mostra do Cinema Marginal, e das retrospectivas de Walter Hugo Khouri, Leila Diniz, e Nelson Rodrigues no Cinema, na realização da I Mostra Internacional do Cinema Extremo, em São Paulo. Se der certo, em 2006, estaremos trazendo para o Brasil sete importantes autores radicais de cinema, que serão homenageados com retrospectivas de filmes e publicação de livro sobre as obras específicas. Vamos privilegiar somente cineastas que já tenham uma obra constituída. Serão três diretores já consagrados e três diretores a serem revelados para o público brasileiro. O sétimo homenageado será sempre um cineasta-autor brasileiro.

Sessões do Comodoro - Existe uma premiação, dentro da própria sessão, para os melhores websites e blogs cujo assunto principal seja Cinema. Essa idéia também ajuda a incentivar novos interessados na área. Você se surpreendeu ou se decepcionou com a qualidade desse material?
Carlos Reichenbach - O prêmio QUEPE DO COMODORO é fruto do meu interesse por essa forma quase revolucionária de pensar e escrever sobre cinema, que são os sites e blogs. Se você, por exemplo, acompanhar os quatro anos de existência do blog DIÁRIO DE UM CINÉFILO, do Aílton Monteiro (de Fortaleza) - prêmio de melhor blog de cinema, pelo júri oficial, de 2004 - vai perceber com nitidez a evolução espantosa do crivo crítico de seu editor. Eu só tenho tido surpresas descobrindo novos sites e blogs de cinema. No entanto, se percebo alguma manifestação de preconceito pessoal do blogueiro contra o filme brasileiro, eu o ignoro por completo. Nos links do meu site OLHOS LIVRES, (http://ww.olhoslivres.com/links.htm) eu procuro inventariar os melhores sites e blogs do Brasil e do mundo. Endereços eletrônicos de cinéfilos "mauricinhos" são sumariamente limados da prospecção.

Sessões do Comodoro - Uma vez você disse que cada experiência boa que tem equivale a vinte anos da sua vida, quantos anos as sessões do Comodoro já inseriram em você?
Carlos Reichenbach - Eu não faço as Sessões Duplas para a minha satisfação pessoal (minha satisfação é escrever e fazer os meus filmes), mas para conhecer melhor alguns "irmãos de universo". Ver filmes pode ser um ato tão prazeroso quando fazê-los. Nesse sentido, como vi com antecedência todos os filmes que exibo, o que vale mesmo é o encontro mensal com os amigos e aficionados.

Sessões do Comodoro - Os filmes que você exibe na "Sessão" influenciam os filmes que você faz? De que forma?
Carlos Reichenbach - Claro. Eu basicamente programo filmes que me surpreenderam de alguma forma. A escolha dos filmes é fruto da minha prospecção pessoal de obras que fogem do convencional. Todo filme, por mais sem importância que aparente ser, em algum momento nos surpreende. Esta é a teoria do "cinema inocente" de que tanto fala Julio Bressane: "Todo filme, possui, pelo menos, um momento luminar, um fragmento de invenção.". São esses momentos ou fragmentos que nos influenciam por toda vida. Há oito ou nove anos atrás eu abominava CANIBAL HOLOCAUSTO, precisei a ver o filme com "olhos livres" para descobrir a obra prima que eu não enxerguei com meu preconceito (na época) em relação ao cinema de gênero. A primeira vez que vi um filme do Jorg Buttgereit, "Nekromantic I", eu fiquei enojado. Depois revi o filme duas vezes e consegui descobrir momentos sublimes em suas cenas de necrofilia quase explícita. O cinema é realmente uma arte subversora.

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