quarta-feira, 20 de junho de 2007

A VIAGEM E O CONSUMO

EUCLIDES GUIMARÃES

Sabemos que a cidadania hoje encontra-se intimamente relacionada com o poder de consumo. A exclusão social é, ao mesmo tempo, a impossibilidade de exercer o direito de cidadania e de participar do consumo. Nesse sentido, podemos dizer que, em nosso tempo, as opções de consumo são também parte substancial das condições para o exercício das famosas “liberdades civis”, que são os direitos elementares do cidadão: liberdade de escolha, direito de esboçar opiniões e críticas, liberdade de crença e o direito de ir e vir. Nessa sociedade onde cidadania e poder aquisitivo se confundem, cada um desses direitos se concretiza na lógica do consumo: liberdade de escolha entre produtos ou serviços que concorrem no mercado; direito de esboçar opinião, revelando suas preferências e denunciando os mercadores e mercadorias enganosas; liberdade de crença, ou de optar entre várias religiões, cujos templos em muitos casos também funcionam como lojas; direito de ir e vir, isto é, transitar e viajar, ou em serviço, ou em férias, mediante pacotes executivos ou turísticos.

É nesse mundo de escolhas pautadas pelo consumo que emergem as possibilidades de construção da identidade. Gostos, preferências e valores, em princípio atributos do indivíduo, freqüentemente assumem aspectos mais amplos, em torno dos quais se firmam grupos de identidade. Chamamos de “grupos de identidade” às confrarias que se formam por comunhão de gostos ou valores. Nessa sociedade globalizada, estetizada e mercantilista em que vivemos, a identidade do grupo, assim como a cidadania, apresentam-se como “nichos de consumo”.

As tribos urbanas, como as tratamos no artigo do número passado, são os mais visíveis entre esses grupos de identidade, oferecendo material seguro para a compreensão do processo pelo qual indivíduos e grupos produzem sentidos para suas vidas nas grandes cidades. Também o ciberespaço, que ocupa cada vez mais o tempo de cada vez mais pessoas na atualidade, funciona como veículo para a consolidação desses nichos. Mas onde se originam os valores e crenças que alicerçam os grupos de identidade?

As origens nos remetem inevitavelmente a lugares. Os valores culturais que referenciam grupos de identidade formam-se em condições históricas e geográficas identificáveis. Cada tribo espalhada pelo mundo vê seus valores se firmarem a partir de acontecimentos e pessoas localizadas no espaço e no tempo. Esse “habitat de origem” muitas vezes se converte numa “meca” para os adeptos da tribo que ali se origina. De que outra maneira poderíamos entender a importância da Jamaica para quem se liga ao reggae? E a importância de Londres, ou mais recentemente, de Seattle, para quem é da tribo do rock? E o Vale do Silício para os fãs de computadores? Ou o Havaí para os surfistas, a Índia e o Gangis para os yogues, o Rio para quem curte samba, Nova York para os yoops, Holywood para os cinéfilos e tantas outras localidades que se sustentam por seu valor simbólico?

Um dos mais comentados efeitos da globalização é a sensação de que o espaço está sendo comprimido. O fato de podermos estabelecer contatos em tempo real com qualquer parte do planeta, bem como o de podermos receber informações just in time de qualquer lugar, produz naturalmente essa sensação. De fato, desde a invenção da roda e dos sinais de fumaça, as tecnologias vêm cumprindo seu papel de encurtar percursos, seja pela velocidade, seja pela instantaneidade da comunicação à distância. Na história da velocidade, chegamos ao arrojo de termos praticamente todo o globo cortado por linhas aéreas. Pelo ar chega-se hoje em qualquer lugar do planeta em menos de um dia. Conquanto nada se compara em termos de fazer próximo o distante, ao que acontece nas redes informacionais de comunicação, dada a possibilidade de circulação e armazenamento de informações em grande quantidade. O hipertexto - nome dado ao assustadoramente crescente volume de informações que circula na rede - encontra-se em vias de se tornar um banco de dados de proporções inusitadas, muito maior que as maiores bibliotecas e os maiores centros de documentação audiovisual. Essa grandiosidade por vezes sugere uma certa autonomia da rede frente às fontes que a alimentam. Mas onde se originam as informações que inundam o hipertexto?

As origens nos remetem de volta ao local. No hipertexto as informações circulam em escala global, combinam-se nessa escala e podem se imiscuir de forma a se soltar facilmente das raízes que as geraram, mas em algum nível de profundidade, restará presente a marca de sua origem local. Das culturas às ciberculturas, tudo se liga às origens e, embora cada grupo adquira autonomia para funcionar em nível planetário, resta sempre presente a nostalgia tão plena de significados, que transforma o “lugar de origem” num valor simbólico de grande magia e sedução.

Na história da cultura, freqüentemente caracterizada pela difusão intensa, o contato e a hibridização, sempre houve a influência do local na formação do geral, do telúrico na formação do nacional ou do regional na configuração do bem cultural industrializado e comercializado pelos meios de comunicação. Nem todos os produtos que chegam ao consumidor nesse “mercado de sentidos”, guardam referências com seus locais de origem, mas muitos guardam e, quando isso acontece, o global divulga o local. O local divulgado através desse valor simbólico que o define como “onde-tudo-começou”, torna-se invariavelmente objeto do desejo de turistas e viajantes.

Os investimentos na área de turismo, que se pautam por desenvolver um mercado de consumo de bens culturais identificados por lugares, devem ter sempre em conta essa força simbólica que não apenas potencializa o desejo de visitar, como também possibilita um contato mais direcionado, uma classificação mais precisa do tipo de público que cabe a cada localidade, uma segmentação eficiente para a implantação de um mercado turístico qualificado.

As Gerais de tantas faces, de tantas histórias e tantas culturas, de tantas influências e tanta biodiversidade, constituem-se naturalmente numa grande fonte de referência para sua divulgação como “lugar de origem”. Nossa arte e artesanato, nossa cozinha, as festas e eventos populares, os costumes mais arraigados, os mistérios de nossos tantos interiores, a literatura e as paisagens naturais, tudo isso nos imerge num manto de sentidos, numa colcha de retalhos que transpira brasilidade em matizes e formas diferentes. Por certo temos aí fontes límpidas para a configuração de identidades.

* Euclides Guimarães (Kika) é sociólogo e professor na PUC Minas


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